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quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Das agruras do amor

Pessoas amadas não deveriam dormir. Nem depender de máquinas, provedores e e-mails lentos, que só aumentam a angústia dos que esperam por alguma notícia. Não poderiam morar longe, nem distanciar-se por muito tempo, mesmo que só por instantes. Deveriam nos ligar diariamente, a cada 30 minutos, para dizer que pensaram em nós e que sentiram a nossa falta. Nos intervalos, seguidos tilintares nos acordariam para mensagens via celular. Também deveriam as pessoas amadas nos mandar pelos correios essas cartas de dois centavos com um recado tipo assim “sonhei com você”, “vi, no jardim da praça, uma flor tão inesperada que me recordei de ti”, ou, apenas, “oggi devo dire que te voglio bene” – como se dizia nos tempos do amor e da canção. Deveriam ainda escrever nos muros, entre o desvario dos grafiteiros, a mensagem codificada (I, de Ío – S, de Saturno; J, de gente em flor resgatada) e a gargalhada em giz seria inteligível apenas pelo viés da cumplicidade, sinais emitidos em alto-mar pelo navio em apuros. Pessoas amadas deveriam aparecer assim, numa noite de sexta, só para dizer "eu te amo". Deveriam andar a pé a nosso lado, ao sol quente ou sob a chuva, porque o amor independe da falta de dinheiro ou de transporte. E jamais largariam nossa mão em pleno vôo. Deveriam as pessoas amadas nos contar piadas sem graça só para descontrair, ou nos abraçar quando, carentes, afundamos entre os sargaços da dolorosa consciência de nossa condição humana e da sua enorme, inelutável solidão. Ou, enfim, apenas afagar-nos em silêncio os cabelos, a cabeça repousada sobre os seios, aqui mesmo, ou ali no motel, ou além no banco da praça sob a lua ou imersa no mais espantoso de todos os crepúsculos. Assim deveria ser, bem que deveria ser assim - amor com asas no coração. Não este prender-se a amarras velhas como um disco-voador atado a âncoras. Não essa distância a ocultar a singeleza do toque, o amor consagrado à eternidade do diamante mais puro e faiscante. Não este restar do encanto inútil, inda que mágico, de ouvir (e só ouvir) e imaginar (só imaginar) da amada a ressonância da respiração sob as estrelas.