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quarta-feira, 24 de junho de 2009

Por que não?

São condições para ser jornalista: saber ler e escrever fluentemente (para embutir recados nas entrelinhas), assim como raciocinar (conforme a matriz ideológica do dono do jornal), ter alguma cultura (decorativa e que nada contribua para a formação objetiva de uma consciência coletiva crítica), ter isenção política (para melhor lidar com a bacia das almas), e ter faro apurado (para antecipar-se às mudanças de clima e tirar proveito de tudo que puder e estiver ao alcance). No mais, dispensou-se o diploma - para que serviria mesmo, num país de liberdade irrestrita? Há estalidos da casta por toda parte, mas o barco não comporta bugiganga ética. Veja aí o voto do ministro Carlos Ayres Britto proferido na sessão do dia 17 de junho, no Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), quando a Corte decidiu, por maioria, que é inconstitucional a exigência do diploma de jornalismo e registro profissional no Ministério do Trabalho como condição para o exercício da profissão de jornalista: “Senhor Presidente, acompanho o voto de Vossa Excelência, no sentido de conhecer do recurso e a ele dar provimento. Apenas avanço rapidamente alguns fundamentos, não de todo coincidentes com os lançados no magnífico voto de Vossa Excelência. Na minha manifestação no bojo da ADPF no 130, o que eu disse, em apertada síntese, foi o seguinte: tudo na liberdade de imprensa é peculiaríssimo, para não dizer único. Incomparável, portanto. O regime jurídico constitucional da liberdade de imprensa é exclusivo, não há como fazer a menor comparação com qualquer outra matéria versada pela Constituição. Isso porque subjacente à liberdade de imprensa estão em jogo superiores bens jurídicos ;basta pensar na liberdade de manifestação do pensamento, na liberdade de informação, na livre expressão da atividade intelectual, da atividade científica, da atividade artística e da atividade comunicacional. Daí porque a imprensa é versada em capítulo próprio, com o nome “DA COMUNICAÇÃO SOCIAL”. Ou seja, é uma comunicação que não se dirige a ninguém em particular, nem mesmo a um determinado grupo de pessoas, mas a toda a sociedade. Ao número mais abrangente possível de destinatários. Em verdade, esses bens jurídicos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são superiores bens de personalidade. Verdadeiros sobredireitos, que servem mais que os outros à dignidade da pessoa humana e à própria democracia. Em consideração a esses superiores bens de personalidade é que a Constituição consagrou por modo absoluto a liberdade de imprensa. Daí que o seu artigo 220 traduza que, em tema de liberdade de imprensa, não há como servir a dois senhores ao mesmo tempo: ou se prestigia por antecipação outros bens de personalidade, como a imagem e a honra, por exemplo, ou por antecipação se prestigia a livre circulação das ideias, a livre circulação das opiniões, a livre circulação das notícias ou informações. E, a meu sentir, a Constituição fez uma opção pela liberdade de imprensa. Deu-lhe precedência, de sorte que tudo o mais é consequência ou responsabilização a posteriori. Leiamos a cabeça desse art. 220: “Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação,” - e vem uma linguagem radical que bem fala do compromisso da Constituição com o caráter absoluto dessa liberdade - “sob qualquer forma, processo ou veículo” – e a Constituição prossegue na radicalidade vernacular – “não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.” Aqui, o termo “observado” significa atentar ara o disposto na Constituição, tão somente. Não na lei. Logo, “observado o disposto nesta Constituição”, mas apenas como consequência ou responsabilização, que é o plano da aferição a posteriori das coisas. Senhor Presidente, também fiz uma distinção entre matérias nuclearmente de imprensa, essencialmente de imprensa, ontologicamente de imprensa, elementarmente de imprensa, como a informação, a criação, a manifestação do pensamento, e, de outra parte, matérias apenas reflexamente de imprensa, como, por exemplo, o direito à indenização e o direito de resposta. Essas matérias apenas reflexamente de imprensa é que podem ser objeto de lei, e, ainda assim, lei específica, lei monotemática; não lei orgânica, não lei onivalente; enquanto as matérias nuclearmente de imprensa não podem ser objeto de nenhum tipo de lei. São matérias tabu para o Estado-legislador. Quem relativizou a liberdade de imprensa, no que foi seguido por alguns Ministros, dizendo que na Constituição não há direitos absolutos; quem iniciou uma relativa divergência quanto ao meu ponto de vista foi o Ministro Menezes Direito em seu belo voto. Mas eu persisti na minha ideia central de que, naquilo que é elementarmente de imprensa, a liberdade é absoluta. Tão absoluta quanto outros direitos de índole igualmente constitucionais, como, por exemplo: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” — direito absoluto; “liberdade de consciência” —— direito absoluto; “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado” —— direito absoluto; o direito de o brasileiro nato não ser extraditado —— direito absoluto; o caráter direto e secreto do voto popular em eleições gerais —— direito absoluto. Mas acompanho Vossa Excelência, Senhor Presidente, no sentido de que a exigência de diploma não salvaguarda a sociedade a ponto de justificar restrições à liberdade de exercício da atividade jornalística, expressão sinônima de liberdade de imprensa. Eu até diria, sem receio de incorrer em demasia nesse campo, nessa matéria objeto deste recurso: a salvaguarda das salvaguardas da sociedade, o anteparo dos anteparos sociais é não restringir nada. No caso, o que pode ocorrer é o seguinte: ou a lei não pode fazer da atividade jornalística uma profissão; ou pode. Se puder, tal profissionalização não pode operar como requisito “sine qua non” para o desempenho dos misteres jornalísticos, inteiramente livres por definição. Quem quiser se profissionalizar como jornalista, freqüentando uma universidade, cumprindo a grade curricular, ganhando os créditos, prestando exames, diplomando-se, registrando o diploma em órgão competente, quem quiser pode fazê-lo. Só tem a ganhar com isso. Porém, esses profissionais - vamos chamar assim - não açambarcam o jornalismo. Não atuam sob reserva de mercado. A atividade jornalística, implicando livre circulação das idéias, das opiniões e das informações, sobretudo, é atividade que se disponibiliza sempre e sempre para outras pessoas também vocacionadas, também detentoras de pendor individual para a escrita, para a informação, para a comunicação, para a criação. Mesmo sem diploma específico. Então, a atividade jornalística tanto se disponibiliza para a profissionalização quanto não se disponibiliza, e nem por isso os não titulados estão impedidos de exercê-la. Sob pena de inadmissível restrição à liberdade de imprensa. Lembro-me, Senhor Presidente, de nomes como o de Otto Lara Resende, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Manuel Bandeira, Armando Nogueira, verdadeiros expoentes do vernáculo que sabiam fazer como faz Manoel de Barros: sabiam perfeitamente bem que penetrar na intimidade das palavras é tocar na própria humanidade. E não se pode fechar as portas dessa atividade comunicacional que em parte é literatura e arte, talvez mais do que ciência e técnica, para os que não têm diploma de curso superior na matéria. Diante desses fundamentos, acompanho o voto de Vossa Excelência. ”