Diante da surpreendente e lisonjeira reação do distinto leitorado, sinto-me estimulado a trazer-lhes mais um escrito, desta vez uma crônica. Espero que gostem:
A nostalgia dos velhos amores
Quando me entendi por gente, na cidade havia um único carro: o caminhão do seu Zé Pedro, o Fon-fon. Era bastante velho, tinha o volante no lado direito, e o dono dizia que era de fabricação inglesa. Como veio parar aqui, não sei. Não havia estradas e entrar ou sair da cidade era uma aventura entre cachoeiras e pedrais, e até me lembro que na primeira vez em que vi de perto um avião aterrissar no aeroporto, corri de medo.
Ainda hoje me indago se o caminhão do Fon-fon teria vindo peça a peça desmontado em barco e remontado na cidadezinha empoeirada. Certo dia apareceu um circo com um gigante que puxou o caminhão, cheio de meninos, por uma corda amarrada nos cabelos. Enquanto arrastava aos trancos a pesada tralha na praça principal, eu via as veias engrossando no seu pescoço de búfalo.
Assim como a balança de ferro fundido do mercadão, o Fon-fon e seu caminhão mágico dissolveram-se no ar, para sempre. Hoje, Marabá tem 17 mil carros e nenhum gigante capaz de puxá-los pelos cabelos.
Durante muitas décadas, a cidadezinha continuou a mesma com seus fogões a lenha e geladeira a querosene – privilégios de casas raras. Luz, só entre seis da tarde e onze da noite, quando seu Pedrinho, Piston e Nicandro conseguiam acordar o Caterpillar amarelão da usina de força e luz, e a energia precária faiscava em lâmpadas comuns sobre postes de madeira.
Em regra, éramos todos muito pobres, mas não faltava o quilo diário de carne em nossas mesas e dos rios pescadores traziam uns peixes enormes.
Foi assim que, menino ainda e já sufocado de saudade e angústia, larguei essas coisas e fui aprender um pouco mais lá fora, num mundo que me ensinou o jejum forçado e a solidão. Foram décadas de ausência e seguidas vezes vim e fui e vim, nessa ainda agora dolorosa e mal-resolvida paixão por Marabá. Aqui amei, sofri, fui profundamente amado e decerto fiz involuntariamente alguém sofrer. Agora, essas lembranças afloram e Marabá faz amanhã (cinco de abril) 90 anos de cidade e, em julho, 105 de fundação.
Há 18 retornei decidido a ficar de vez, ter filhos, continuar a sonhar e lutar por um futuro mais digno para minhas crias e as dos conterrâneos, e depois deixar, quem sabe, embranquecer, aí pelos 88 anos, meus ossos juntos aos ossos de meus pais, tia, sobrinho e amigos nas campas de São Miguel.
Há tempos, contudo, me dou conta que, se avançamos, foi para trás. Quanto mais nos modernizamos, mais tornamo-nos insensíveis, perdemos a solidariedade.
Enquanto estradas foram abertas e a cidade inundou-se de trabalhadores, empresários e bandidos, videogames, antenas cancerígenas e telefones celulares, computadores internetados, parabólicas e bancos, e uma industrialização capenga acampou no inimaginável distrito industrial, há gente passando fome, morrendo de fome, e não era isso que eu sonhava para minha terra. A industrialização não é, eu sei, necessariamente um processo que torne a vida mais humana, porém nada custava iludirmo-nos com as possibilidades de outros horizontes.
Pois agora, com uma esquisita sensação de impotência, de sonho sonhado em vão, de vez em quando me pego assim olhando o tempo, a curva do rio, os aviões enormes que cruzam os céus, e torna essa impressão de que, apesar dos meus 50 e muitos anos e dessa pobreza crônica, a qualquer hora volto a pegar a estrada e ir para bem longe viver uma outra história (talvez desta vez para sempre, como o caminhão inglês e o gigante com pescoço de touro). (04.04.2004)