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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Fantasia para o Itacayunas

Nós, os tracajás, as lontras e camaleões do Itacayunas, sabíamos pelo cheiro da água como viria o tempo logo amanhã. Cedinho, quando íamos de canoa ao meio do rio colher a água em latas e carregá-la em cambão para o pote de barro e depois bebê-la em copos de alumínio areados no jirau, sentíamos no cheiro de melancia o prenúncio da enchente, fartura, castanha trazida em barcos transbordantes, vôos de gaivota lá de cima da escadaria do barracão dos Vergolinos ou dos galhos mais altos da piranheira no Buraco das Moças. Nosso rio magrinho sempre teve mais poesia do que qualquer outro. A gente sabia que a cabeceira dele ficava no grosso das serranias, no confronto com as terras de Altamira, mas para nós começava bem ali na boca do Sororó e vinha escorrendo pelo Pirucaba, avançava pelas olarias, Porto das Lavadeiras, Porto dos Homens, Buraco das Moças e Beira da Cadeia de São José, onde a pesca de mandi era mais farta que logo adiante, nas encostas do Cabelo Seco, lugar de corredeiras e sardinhas, e onde dava de cara com o Rio Grande dos barcos imensos, das caranhas apanhadas com linha grossa de náilon amarrada ao galho da árvore para agüentar o tranco do peixão, luta que durava horas à beira do barranco sem cais de cimento ou pedras. No Itacayúnas, com as primeiras chuvas a Grota Criminosa explodia em urrrrrrros e espuma bem em frente à minha casa, vinda dos remotos distantes, lá de cima das Mangueiras onde florava o murici-galego e cantava a fogo-apagou. Então as traíras atiravam-se contra a ferocidade das águas e saltavam como flechas sobre a correnteza e as apanhávamos em pleno ar em paneiros de castanha. Corvinas e arraias fremiam na água à-toa. Lá dos lados de lá, além do lado de lá da beira do Itacayunas, búfalos punham a cabeça fora d'água, entre iumas e bando de ciganas. Mais acima, sobranceira entre cajuais a perder de vista, a terra dos Quindangues recendia a mandingas e encantos. Para lá de lá, caravanas de adolescentes iam perder a virgindade com o amor que não dizia o nome. Um dia, um pacato cidadão chamado Toím lançou na água uma bomba que enchia a tarde de ruídos e risos dos que zombavam da sua loucura. Meses depois eis Toim vendendo, num carrinho de mão, enormes uvas verdes produzidas na tabatinga tosca e amarela do Itacayunas. Um milagre jamais visto. O Itacayunas nos deu poetas como José Herênio, Xavier Santos, Miguel Serrano, J. Montano - batelões carregados de poesia e suor. E estas lembranças com que eu mesmo alimento minha própria alma.

Devastação financiada

Enviado do jornal O Estado de S. Paulo, o jornalista João Domingos retornou à Paulicéia desvairado com o “tipo de desmatamento incomum” em andamento no município de Cumaru do Norte. “A derrubada da mata está chegando aos cumes dos morros. Sem a proteção das raízes das plantas, o deslizamento de encostas já começou. Por terra ou por ar é possível verificar o desmoronamento do topo de pequenos morros. O desmate nas margens de riachos e igarapés também é visível”, diz ele em matéria publicada no final de janeiro. Cumaru, é verdade, é um dos 36 municípios que mais desmataram em 2007. Quem devastou? Grandes empresários do Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste envolvidos com a pecuária, utilizando “imensos tratores C-145 (ligados por correntes, no sistema de arrastão), numa rapidez capaz de enganar os satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)”. Agora vamos ver se o governo federal, como prometeu no começo do ano, vai cortar o crédito agrícola para fazendeiros e agricultores envolvidos em crimes ambientais. Segundo a reportagem do Estadão, de acordo com a prefeitura de Cumaru, só nos últimos quatro anos 35 grandes fazendeiros compraram terras de áreas superiores a mil alqueires goianos (cerca de 4.850 hectares). Calcula-se que, só ali, a pecuária já tenha levado para os pastos, no meio da floresta, pelo menos um milhão de cabeças de gado. Ao contrário de municípios vizinhos, o de Cumaru é praticamente um grande pasto. De vez em quando aparecem áreas de florestas. “Há clareiras abertas na mata que ainda mostram a violência cometida contra as castanheiras. Deixadas em pé, tornaram-se frágeis e morreram. As queimadas também ajudaram a matar as árvores. Ao contrário das espécies do cerrado, as castanheiras não desenvolveram a casca grossa para se proteger das queimadas. Também é possível ver grandes áreas derrubadas recentemente”. Cumaru fica a dez quilômetros de Ourilândia do Norte, ambos território das minas de níquel Onça Puma, da Vale ex-Rio Doce.

Advogado

Alto funcionário da corte do rei Akbar, há muito tempo Amit nutria o desejo incontrolável de beijar até se fartar os voluptuosos seios da rainha. Todas as vezes que tentou, porém, deu-se mal. Um dia, ele revelou seu desejo a Birbal, principal conselheiro e advogado do rei, e pediu-lhe ajuda. Birbal, depois de muito pensar, concordou, sob a condição de Amit lhe pagar mil moedas de ouro. Feito o acordo, no dia seguinte Birbal preparou um líquido que causava comichões e derramou no sutiã da rainha, que o deixara fora enquanto tomava banho. Logo a coceira começou, intensificou-se, deixando o rei preocupado. Médicos de todo o reino foram chamados, inutilmente. Birbal então disse ao Rei que apenas uma saliva especial, se aplicada por quatro horas, curaria aquela espécie de coceira. Birbal também disse que essa saliva bendita só poderia ser encontrada na boca de Amit. Então, Akbar chamou Amit que, pelas quatro horas seguintes, fartou-se como pinto em lixo, ó felicidade!, nos peitões da rainha. Ora, vai que, satisfeito, Amit encontrou-se mais tarde com Birbal, que lhe foi cobrar os seus, digamos, honorários. Velhaco e zombeteiro, Amit mandou o advogado ir à baixa da égua, sabedor que Birbal jamais contaria a verdade ao rei Akbar. Como a vingança é um direito sagrado e um néctar nem sempre exclusivo dos deuses, Birbal engoliu a humilhação, mas deu o troco: derramou o líquido da coceira nojenta na porção dianteira da cueca do rei. O resto dessa história, mandada pelo advogado e meu compadre Sílvio Damasceno, você pode imaginar. E como quem avisa amigo é, a m0ral da história é a seguinte: “Você pode ficar devendo pro mundo inteiro, mas nunca, nunca mesmo, pense em dever para um advogado.”

Fala sério

Justificativa da presidente do Tribunal de Justiça do Estado, desembargadora Albanira Lobato Bemerguy, para suspender a liminar da Juíza da Vara dos Feitos Públicos de Marabá, Audecy Pissolati, que afastou o prefeito Sebastião Miranda por conta da denúncia (Proc. 200730085097) de improbidade administrativa feita pelo Ministério Público Estadual: “(...) defiro o pedido de suspensão, para evitar-se tão-somente que o pagamento dos vencimentos em atraso seja efetuado sem a respectiva sentença transitada em julgado e conseqüente inclusão no orçamento da Fazenda Pública Municipal, por meio de precatório.” Não é brincadeira... Está lá no site do TJE-PA. É como se não existisse a figura do vice, substituto natural do prefeito encrencado e com capacidade, no exercício das funções, para autorizar tais pagamentos.

Inacreditável!

Quando me falaram que em Andradina, interior mineiro, uma editora foi condenada por defender direitos humanos eu não quis acreditar. Então um amigo me mandou a matéria, que transcrevo abaixo, para indignação dos meus leitores: Editora condenada por denunciar condições desumanas da cadeia de Leopoldina (MG) Era inacreditável que um juiz de direito fosse se ocupar com um jornalzinho alternativo, de 200 exemplares, distribuidos numa cidadezinha no interior de Minas Gerais e que só visa contribuir para humanizar o sistema penal e atenuar o caos carcerário em nosso país. No entanto, a juíza disse textualmente na última audiência: "É melhor a senhora aceitar a transação penal porque não há a mínima possibilidade de absolvição, embora eu nem tenha lido o processo". Por Glória Reis, professora e editora do jornal Recomeço. "A injustiça que se faz a um é uma ameaça que se faz a todos" Montesquieu No final de 2006, informei aos meus leitores e divulguei na internet que estava sendo processada pelo então juiz da Execução Penal de Leopoldina, acusada de difamação por ter escrito um editorial no qual eu expunha as condições desumanas da cadeia de Leopoldina. Vários amigos se manifestaram e alguns sites e blogs publicaram a notícia. A professora Maria Helena Zamora escreveu o artigo "Glória e o Recomeço" no site La Insignia, no qual manifestou sua indignação sobre o fato. Encontrei apoio também da advogada Vera Vassouras e outras pessoas sensibilizadas, que divulgaram a notícia na internet. Acredito que as pessoas, assim como eu mesma, no início, não acreditavam que isso fosse adiante. Afinal o que mais se fala neste país é sobre os milhões de processos do Judiciário, de juízes ocupadíssimos, da necessidade de se concentrar na questão urgente da violência urbana que assola o cotidiano do povo brasileiro. Era inacreditável que um juiz de direito fosse se ocupar com um jornalzinho alternativo, de 200 exemplares, distribuídos numa cidadezinha no interior de Minas Gerais e que só visa contribuir para humanizar o sistema penal e atenuar o caos carcerário em nosso país. Coisa de sonhadores! Ledo engano o nosso, eu e meus ingênuos leitores! Eles, em bloco, o juiz acusador, o promotor de justiça e a juíza que julgou, vieram com toda sanha e determinação. Não importava a minha inocência, queriam a minha cabeça, daquela mulher "incômoda e perigosa" que publicava no jornal a radiografia da masmorra prisional, pela qual eles são as autoridades responsáveis. Como na ditadura, houve interrogatório policial, várias audiências, até culminar na minha CONDENAÇÃO, neste janeiro de 2008. A sentença compõe-se de oito páginas primorosamente escritas e recheadas de citações, leis, artigos, verbetes do Houaiss, expressões latinas, e, principalmente, o corporativismo da classe, que está acima da ética e da justiça. Deduz-se que a juíza dedicou grande parte de seus dias do fim de 2007 e início de 2008 para se debruçar sobre a estética da sentença. Queria um verniz literário para camuflar o pré-julgamento e criminalizar a inocência. Sobre o veredito, a juíza não necessitou de tempo, pois disse textualmente na última audiência: "É melhor a senhora aceitar a transação penal porque não há a mínima possibilidade de absolvição, embora eu nem tenha lido o processo". Assim, já saí da audiência com a sentença condenatória. Segue o editorial que deu origem à condenação (No final, em vermelho, o trecho "criminoso"): EDITORIAL EDIÇÃO 117 Que regime é este em Leopoldina? Com a LEI No 10.792/1º.12.2003, foi criada a RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) para aplicação de penalidade disciplinar ao preso pelo cometimento de falta grave, ou seja, "aos líderes e integrantes de facções criminosas e aos presos cujo comportamento exija tratamento específico" (art. 1º). Então, assim ficou a redação na LEP, a Lei de Execuções Penais: Art. 58. O isolamento, a suspensão e a restrição de direitos não poderão exceder a trinta dias, ressalvada a hipótese do regime disciplinar diferenciado." (Redação da LEI No 10.792/1º.12.2003) . Acontece que, mesmo a RDD garante ao preso “banho de sol por, 'no mínimo', uma hora por dia e visita semanal de duas horas... (arts. 4º e 5º, II, IV e V da resolução). REGIME COMPLETA UM ANO Como interpretar o fato de que os presos de Leopoldina, que não se enquadram ao perfil de condenados descrito na Lei, estejam num regime mais diferenciado que o RDD, pois o banho de sol é uma vez por semana e a visita é de 15 minutos através das grades? Esta realidade é a confirmação de que ainda vigora o entendimento de que o preso está sujeito a uma relação especial de poder, embora derive da Constituição a obrigatoriedade da proteção dos seus direitos fundamentais tanto pela autoridade judicial, quanto pela autoridade administrativa. DIREITOS E DEVERES RECÍPROCOS Também vigora o entendimento de que há entre preso e administração penitenciária uma relação de sujeição e não uma relação de direitos e deveres recíprocos entre autoridades e prisioneiros. Não é aceitável a conivência de magistrados, fiscais da lei, advogados, enfim, operadores do direito com tamanha barbárie. O regime atual é um desrespeito à Constituição, à lei, aos cidadãos deste país, enfim, à nossa inteligência. APELO Solicito às pessoas que ainda se indignam com a injustiça e tirania neste país que protestem da maneira que puderem contra o despotismo do judiciário de Minas Gerais. Divulguem entre amigos, na internet, na imprensa, nas entidades de defesa dos direitos humanos. A liberdade de expressão está sob perigo, a toda hora deparamos com notícias de condenação em primeira instância contra meios de comunicação no país. Mais informação sobre a sentença está no blog do jornal Recomeço: http://jornalrecomeco.blogspot.com/

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008



Fotos



Para os amigos, uma coleção de fotos minhas

Espelho

Ademir Braz Acordo repentino e sobressalto: com olhos amarelos clandestinos espreita uma agonia em meu sapato. Acordo e vem à tona o desatino dos dias remotos de amores infelizes; do rosário das marias, das dores, das raízes deste naufrágio no sujo mar de sargaços a que me levaram a fome e a sede de abraços para o amor oculto entre a alma e as heras do doido rio de mim, e do deserto em que feras repousam à luz das flores no meu peito. Falhei por inteiro nesse intento: dos altares, onde deitei minhas oferendas (aquilo que julgava as minhas prendas), levou-as para longe o vasto vento. Perdi. No amor eu sempre perco. E volta a vida a vegetar no seu esterco. Mas, se este é meu fado, que jeito senão ir adiante sem temores? Que mal ou bem ainda me espera além da porta em que o espelho vela suas desilusões, seus desamores? (fev, 08)