Capítulo
3
Muitos
anos depois,
desde que
se incorporou definitivamente como seiva ou casca à essência vegetal
trintenária que o abrigou tantos anos,
Januário dos Espíritos seria lembrado apenas durante
os verões, quando
a jaqueira cobria-se de rosas douradas e gerânios.
Ele não
morreu: apenas voltara aos elementos, ao chumbo,
ácidos, átomos, sais que um tempo fulgiram nas estrelas.
Antes disso, quando profetizara o renascer das águas, a
vinda do dilúvio,
nascia agosto em
Abaram e viria para sempre, dezenas de anos na forma
de uma chuva fina
e sem fim
de cinzas a cair
silenciosa sobre
as casas, tangida desde
longe pelo mesmo sopro quente das queimadas
que avançavam sobre
os castanhais. Já então
cães irritados ladravam a noite inteira, velhos lacrimejavam, tossiam e choravam crianças inquietas. Deserdada
dos ventos, a noite
condensava de tal sorte
o manto de fumaça
sobre as casas
e a mata que,
pela manhã,
criaturas mal
dormidas tateavam entre
as cômodas, câmaras
ardidas, e erravam tontos de fumaça os animais
pela rua.
Infinitamente cinza
era o céu
de agosto. As nuvens
– antes gigantescas e formidáveis - quase
eternas de dezembro a maio, minguavam desse mês
em diante
até sumir nos largos horizontes de chumbo
e cinza de agosto.
Emparedado em fumaça,
o sol desabava numa claridade
suja sobre
o verde escasso
e o ar espesso
fervia na entranha dos pássaros. Não
havia como fugir
desse inferno, das cidades,
povoados, vilas
enclausuradas em círculos
de chama e cinzas.
Jamais era
dia por
inteiro em
Abaram. Andava em tudo
um mormaço
doentio a esmaltar
os olhos, a empedrar
o tempo, elidir
as horas, cada
instante a esgarçar-se em vácuo antes de consumir-se na penumbra.
Deixava então o dia
de ser dia - como se entende a massa
luminosa das horas
que transita acima
dos homens e dos campos,
de uma à outra parte
do mundo. Suave
e breve no começo,
a seguir sufocante,
corrosiva de vez,
até que
o sol falecesse no longe
dos oceanos. Ressecavam-se, antes do coito
das abelhas, as flores
do cajueiro. As mangas,
miúdas, amareleciam raquíticas; pecavam os frutos
no limoeiro. Meses inteiros
não chovia, e agosto
avançava por setembro,
outubro, novembro.
Foi
em agosto
também, embora
muito antes
do dilúvio, que
Fortunato Costa teve o sonho profético.
Ele morava há anos
no centro empoeirado de Abaram e certa madrugada
dormitava, entre o sono
frouxo e os torpores
ainda remotos
do despertar, quando
a luz azul
filtrou-se por baixo
da porta. Dentro
da luz, no quarto
escuro e tosco,
um ser incandescente. “Fortunato
- a voz de catedral
fazia tremer as paredes
-, Fortunato, assim
que amanhecer
faz o que meu
Senhor te
ordena”. Folha seca,
a alma de Fortunato vagou longo tempo ao sopro do vendaval
de luz e ressonâncias
inumanas a ditar-lhe condutas, palavras, regras
miúdas. Quando sua
mulher levantou-se, de manhã, devagar
e suspirando como há cinqüenta anos, ela
percebeu que, acordado, as mãos cruzadas sobre o peito descarnado, Fortunato olhava sem
ver as ripas
de morototó enegrecidas do telhado.
“Matutando cedo, meu
velho?”, “Não,
minha velha,
foi sono curto”,
ele disse. Ela
arrumou em rodilha
os cabelos grisalhos
e foi buscar lenha
no depósito fora
da casa. No quintal,
os gatos amontoavam-se sobre os sacos
de estrume para
os canteiros. Nos
céus apontavam os fulgores
do aço de agosto.
Mais
tarde, quando
a cidade começava a derreter-se em suores e
zanzavam inquietas as crias sob o cajueiro carregado de flores
secas e frutos
pecos, nem o cheiro
do café torrado e moído em casa fez
mover-se Fortunato, ele que toda a vida levantara-se antes
do abrolhar da aurora.
Ele ficou ali,
na cama fincada no chão,
as mãos juntas
na ossatura do peito,
olhos ainda
gatiados pela visão
do arcanjo. E pela
primeira vez
na vida nada
dissera à companheira. Desse dia em diante, passou a meter-se em
vestes apenas
diversas na cor, mas
rigorosamente iguais
no talho: calça,
camisa e gravata
confeccionadas sob medida
no mesmo tecido.
E mal servia-se do café
matinal com
mangulão e leite fresco,
entregue à porta
em bujões
zincados, punha Fortunato o chapéu e atirava-se às ruas.
“Lá vem o gravata
do mesmo pano”,
debicava o populacho ao vê-lo apontar em qualquer esquina
montado num burrico,
as pernas compridas a esbarrar
no chão. Circunspecto,
Fortunato nem os ouvia: a um missionário não cabe dispersar-se nas miudezas
profanas do mundo. Todo
santo dia
trotava pelas ruas e vielas da cidade
e diziam haver certo
método na sua
loucura: se ia pela
Rua dos Mineiros,
ao alcançar o Varjão descia pela
Rua do Poço,
tomava a Rua Grande,
dobrava em direção
ao Alto do Bode
e chegava em casa
pelo Barro Branco pontualmente
à hora do almoço.
“Por onde
anda, meu
velho?”, indagava aflita
a companheira. “Procuro, minha velha, não se vexe”. À tarde,
após a sesta,
cruzava por baixo
a ponte que
unia a Rua Nova
aos fundos da igreja
do padroeiro, circundava o Cabelo Seco,
passava em frente
ao cemitério, subia a rua
Itacayúnas, descia a Baixa da Égua, varava o Pau
d’Urubu, entrava e saía do Beco do Facão
de Fora, arrastava-se por Jurema,
Jureminha, empertigado e solene entre as prostitutas e os jogadores
de bilhar. Certa
feita, o poeta Augusto Bastos
parou-o no meio da rua:
“Eis nosso
D. Quixote – saudou-o gravemente - mas
falta-lhe uma lança. Meu reino por uma lança!”
O cavaleiro ali,
impassível diante
dos boêmios diuturnamente
em
farra. Bastos
tinha os cabelos
grisalhos e longos,
a barba cerrada
e suja, olhos
alucinados de aguardente e poesia. Bastos, goiano de origem e de início do
século, veio ainda criança para Abaram. Morou uns tempos em Belém, onde o
convívio com intelectuais o revelara o poeta candente e escorreito. Em 1932,
empolgado com o Movimento Constitucionalista, foi para São Paulo, onde
engajou-se como soldado, mas logo abandonou a farda. Desiludido, retornou a
Abaram, à vida espartana e à boemia. Baixinho, empinava-se agora na ponta dos pés e
sua cabeça
emparelhava com a do burrico guarnecida por
antolhos. “Deixai crescer o cavanhaque,
distinção dos nobres”,
continuava Bastos, a rédea de couro numa das mãos. Um dos bêbados voltou com
uma lança – na verdade,
uma vara pintada
à mão e coberta
de fitas coloridas -, confiscada entre as fantasias
do boi-bumbá de Pamica. Bastos enfiou-a na mão
direita de Fortunato. “Ide agora, cavalheiro
andante, e dai combate
aos dragões que
infernizam esta corrutela sem nenhum futuro”,
proclamou solene, enquanto
seus parceiros
cutucavam o animal.
A
noite bulia nos olhos de Fortunato feito carícia a ronronar o tempo, os contornos
do céu. Na esquina, crianças brincavam e sua voz tangia os anjos caídos do
crepúsculo:
Nesta rua, nesta rua tem um bosque
Que se chama, que se chama solidão;
Dentro dele, dentro dele mora um anjo,
Que roubou, que roubou meu coração.
Se roubei, se roubei teu coração,
Tu roubaste, tu roubaste o meu também;
Se roubei, se roubei teu coração,
É porque, é porque te quero bem.
Se esta rua, se esta rua fosse minha
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de
diamante
Para o meu, para o meu amor passar.
Durante
bom curso. o animal rabiscou seu
caminho, há tempos para lugar nenhum. Sobre ele, o ancião caminhava
distraído sobre pedrinhas da infância perdida nem Deus sabe onde, no cerrado ou
na caatinga, entre seriemas e gorgulhos polidos nas fontes secas. Então passou
os dedos nodosos nos cabelos brancos, úmidos e empoeirados da soleira, suspirou
profundo e nem percebeu que já as trevas ganhavam o mundo.
3o. Capítulo do meu romance "Lugar dos Invisíveis"