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terça-feira, 30 de outubro de 2007

De súbito, umas lembranças!...

Cantávamos no coral desde a nave suspensa da igrejinha de São Félix nas manhãs ou noites de domingo. Era parte do conteúdo de canto orfeônico da escola mas foi assim, talvez, que me apaixonei pela música soturna e medieval das igrejas, o canto gregoriano, o som do cravo, da pianola de pedais tocada por Joãozinho Sariema. Ele também dedilhava acordeon em sua casa e ensinou-me, eu ainda menino, a datilografia na velha Remington inglesa. O Santa Terezinha era ali mesmo no centro: a entrada estreita pela Praça Duque de Caxias e os fundos, uma área livre com mangueira e sala de aula, para os lados da Avenida Antônio Maia, que chamávamos Rua Grande. Estudar no Santa Terezinha era um privilégio raro para jovens pobres. Quando terminei o primário na escola pública e fui aprovado no exame de admissão, a família descartou qualquer esperança: não tinha como pagar o estudo no único ginásio da cidade. O pai castanheiro, a mãe lavadeira, o irmão operário que abandonara os estudos para ajudar na despesa da casa, essa a realidade. Naquele tempo, 1961, bem em frente nossa casa havia uma pitombeira jovem no meio do descampado que abria imensa janela para o rio. Foi lá que o velho Plínio Pinheiro, desbravador de castanhais e garimpos de diamantes, me encontrou aos prantos. Constrangido e assustado com a figura impressionante daquele homem enorme, firme e gentil ao mesmo tempo, contei-lhe a causa do desespero. Ele ouviu pacientemente e disse com a maior naturalidade “Vá fazer sua matrícula, veja os livros e o uniforme, e vá em casa buscar o dinheiro”, enquanto eu o olhava com espanto, sem entender, as lágrimas, de súbito, uns grãos de gelo. Em seguida, atravessou a rua, entrou em casa e conversou com mamãe, até que ela veio abraçar-me também em prantos. Velho Plínio não gastou comigo um único centavo. Através de prova seletiva, ganhei meia bolsa da prefeitura e meia do Estado, ambas com a condição de não repetir o ano nem tirar nota abaixo de sete. Isso não excluía, naturalmente, a força da família na compra de calçado, roupas, livros, transporte, mas era uma ajuda inestimável para manter-me no ginásio. Depois de tudo fui à casa do velho Plínio, aquele homem extraordinário, agradecer-lhe a generosidade e olhá-lo de perto uma outra vez para nunca mais esquecê-lo. Quando mudamos em 1962 para o alto da colina, na margem esquerda do Itacaiúnas, arrancamos com as mãos raízes e pedras do solo ingrato e cercamos de jardins toda a extensão do ginásio, enquanto, na frente, erguemos um bosque, o “bouissonet”, como lhe chamavam as mestras dominicanas. O colégio mesmo, em boa parte, fora erguido com tijolos comprados e levados um a um pelos estudantes nesse trabalho de carreiro cotidiano de formigas. Nos canteiros usamos sementes e mudas, muitas, vindas do inefável sertão goiano, trazidas pelas freirinhas de lá originárias. Mas valemo-nos, com desenvoltura, dos recursos ao alcance, flores amarelas da acácia silvestre, a passiflora roxa em rama sobre latadas, o flamboyant a esvair-se em sangue sobre gorgulhos. Um mamoeiro crescera bem ao lado de uma das janelas da nossa sala e quase podíamos alcançar com as mãos seus frutos voluptuosos.

Um comentário:

morenocris disse...

Meu povo, minha casa, a saudade!

Que lembranças, AB ! Que encanto de registro! Você toca o meu coração!

Obrigada.

Beijos e abraços.