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sexta-feira, 7 de março de 2008

Não chore por mim, Nova Deli

Ando invocado com uma porção de coisas.Invocado pra porra! To cansado de falta de dinheiro, de contas a pagar, de políticos cavernosos e outras etiologias da safadeza (e quem não está?)observo que os cupins resolveram sentar praça em casa outra vez. Tô, em bom latim, puto da vida. Então resolvi escrever uma coisa diferente, uma novela, um romance, sei lá o que, conforme der e puder, agora que estou com pelo menos dois livros prontos ("Lua de Jade",poesia minha, e "Lavoura do caos",uma coletânea de três bons autores locais). Como meu romance ou sei lá o que vai ficar, sair, ou se será publicado algum dia, não sei, não me interessa. Tô publicando abaixo o primeiro capítulo pra vocês sentirem o drama. Beijos lascados pra vocês. 1 Foi num agosto que Fortunato Costa teve o sonho profético. Dormitava entre o sono frouxo e os torpores ainda remotos do despertar quando a luz azul filtrou-se por baixo da porta. Dentro da luz, no quarto escuro e tosco, um ser incandescente. “Fortunato - a voz de catedral fazia tremer as paredes -, Fortunato, assim que amanhecer faz o que meu Senhor te ordena”. Folha seca, a alma de Fortunato vagou longo tempo ao sopro do vendaval de luz e ressonâncias inumanas a ditar-lhe condutas, palavras, regras miúdas. Quando sua mulher levantou-se, devagar e suspirando como há trinta anos, percebeu que, acordado, as mãos cruzadas sobre o peito descarnado, Fortunato olhava sem ver as ripas enegrecidas do telhado. “Matutando cedo, meu velho?”, “Não, minha velha, foi sono curto”, ele disse. Ela arrumou em rodilha os cabelos grisalhos e foi buscar lenha no depósito fora da casa. No quintal, os gatos amontoavam-se sobre os sacos de estrume para os canteiros e apontavam nos céus os fulgores do aço de agosto. Há décadas, em agosto cães irritados ladram a noite inteira, velhos lacrimejam, tossem e choram crianças inquietas. Deserdada dos ventos, em agosto a noite condensa de tal sorte o manto de fumaça que, pela manhã, criaturas maldormidas tateiam entre as cômodas, câmaras ardidas, e erram tontos os animais pela rua. Infinitamente cinza é o céu de agosto. As nuvens - gigantescas e formidáveis - quase eternas de dezembro a maio, minguam desse mês em diante até sumir nos largos horizontes de chumbo e cinza de agosto. Emparedado em fumaça, o sol desaba numa claridade suja sobre o verde escasso e o ar espesso ferve na entranha dos pássaros. Não há como fugir desse inferno, das cidades, povoados, vilas enclausuradas em círculos de chama e cinzas. Em agosto, jamais é dia por inteiro em Marabá. Anda em tudo um mormaço doentio a esmaltar os olhos, a empedrar o tempo, elidir as horas, cada instante a esgarçar-se em vácuo antes de consumir-se na penumbra. Deixa então o dia de ser dia - como se entende a massa luminosa das horas que transita acima dos homens e dos campos, de uma à outra parte do mundo, suave e breve no começo, a seguir sufocante, corrosiva de vez, até que o sol faleça no longe dos oceanos. Ressecam-se, antes do coito das abelhas, as flores do cajueiro. As mangas, miúdas, amarelecem raquíticas; pecam os frutos no limoeiro. Não chove meses e agosto avança por setembro, outubro, novembro. É sempre assim, a velha suspirou. E agosto rugia no ar para sempre. Mais tarde, quando já a cidade derretia-se em suores e as crias zanzavam inquietas sob o cajueiro carregado de flores secas e frutos pecos, nem o cheiro do café torrado e moído em casa fez mover-se Fortunato, ele que toda a vida levantara-se antes do abrolhar da aurora. Ficou ali, na cama fincada no chão, as mãos juntas na ossatura do peito, olhos ainda gatiados pela visão do arcanjo. Desde esse dia passou a meter-se em vestes apenas diversas na cor mas rigorosamente iguais no talho: calça, camisa e gravata confeccionadas sob medida no mesmo tecido. E mal servia-se do café matinal com bolo mangulão e leite fresco, punha o chapéu e atirava-se às ruas. “Lá vem o gravata do mesmo pano”, debicava o populacho ao vê-lo apontar em qualquer esquina montado num burrico, as pernas compridas a esbarrar no chão. Circunspecto, Fortunato nem os ouvia: a um missionário não cabe dispersar-se nas miudezas profanas do mundo. Todo santo dia trotava pelas ruas e vielas da cidade e diziam haver certo método na sua loucura: se ia pela Rua dos Mineiros, ao alcançar o Varjão descia pela Rua do Poço, tomava a Rua Grande, dobrava em direção ao Alto do Bode e chegava em casa pelo Barro Branco pontualmente à hora do almoço. “Por onde anda, meu velho?”, indagava aflita a companheira. “Procuro, minha velha, não se vexe”. À tarde, após a sesta, cruzava por baixo a ponte que unia a Rua Nova aos fundos da igreja do padroeiro, circundava o Cabelo Seco, passava em frente ao cemitério, subia a rua Itacayunas, descia a Baixa da Égua, varava o Pau d’Urubu, entrava e saía do Beco do Facão de Fora, Jurema, Jureminha, empertigado e solene entre as prostitutas e os jogadores de bilhar. Entre os boêmios diuturnamente em farra, certa feita o poeta Augusto Bastos parou-o no meio da rua: “Eis nosso D. Quixote – saudou-o gravemente - mas falta-lhe uma lança. Meu reino por uma lança!” O cavaleiro ali, impassível. “Deixai crescer o cavanhaque, distinção dos nobres”, continuava Bastos, a rédea de couro numa das mãos. Bastos tinha os cabelos grisalhos e longos, a barba cerrada e suja, olhos alucinados de aguardente e poesia. Baixinho, empinava-se na ponta dos pés e sua cabeça emparelhava com a do burrico guarnecida por antolhos. Um dos bêbados voltou com uma lança – na verdade, uma vara pintada à mão e coberta de fitas coloridas - confiscada entre as fantasias do boi-bumbá de Pamica. Bastos enfiou-a na mão direita de Fortunato. “Ide agora, cavalheiro andante, e dai combate aos dragões que infernizam esta corrutela sem nenhum futuro”, proclamou solene, enquanto seus parceiros cutucavam o animal.

12 comentários:

morenocris disse...

Caramba, a produção está de vento em pôpa! Parabéns. Vou voltar com calma para ler tudo no blog.

Beijos.
Obrigada pela visita.
Gosto tanto quando você vai lá.
Fico feliz.

Anônimo disse...

o gravata do mesmo pano será o personagem principal, junto com a outra figura A, Bastos?só assim poderei conhecê-lo melhor.
via mail vai tb minhas primeiras páginas de algo semelhante, mas não tåo bom quanto este seu, acho que a prosa pode ser mais efetiva que a poesia, nos tempos que correm...está excelente!!!
julio cesar

Ademir Braz disse...

Pô, leminsk, os caras resolveram pentelhar minha vida duma vez: ou trato deles ou não tenho mais sossego rsrsrsrs Vamos ver como fica

Ademir Braz disse...

Oi, Cris:
Não esqueça os comentários rsrsrsrs

Anônimo disse...

AK DIZ
É um prazer saber desse seu caminho de letras.
Afonso Klautau

Anônimo disse...

ah, escreva que eu publico!
julio cesar costa
PS. não perderei a oportunidade de imortalizar o "gravata do mesmo pano"

Anônimo disse...

CARO ADEMIR;
Aplaudo, de pé,toda e qualquer iniciativa que almeja transportar para o papel, escrevendo um conto, uma novela ou um romance, histórias ou estórias que tenham como cenário o interior do Pará. Isto posto, foi com alegria que li o que denominas como início de uma obra. É certo que ficarei torcendo pela sua conclusão, pois tudo indica que o personagem principal, em suas caminhadas pela Marabá QUE TÃO BEM CONHECES, será a consciência crítica das transformações que esta região vem sofrendo, para o bem e para o mau. Sei que ainda é cedo, entretanto, senti falta da definição temporal em que a história se passa ou passará. No mais, manda bala.
Abraços do Ronaldo Barata

Ademir Braz disse...

Dr. Ronaldo, o "gravata", creio, dará uma geral na currutela, mnontado no burrico. Januário dos Espíritos vai elucidar parte da saga dos migrantes. Seus herdeiros vão danar-se nos pedrais, atrás de diamantes; nos castanhais-cativeiro, como aves de arribação. A cidade será o centro desse caos crescente, tudo indica, com suas mutações. Vamos ver no que dá.

Anônimo disse...

esse romance é necessário como alma-mater de nossa região somente as palavras é que poderão imortalizar tudo que está se perdendo, definhando, sumindo, morrendo...
vamos tentar uma bolsa prá ti escreveres esse negócio?
jc

Ademir Braz disse...

Caro leminski.
uma bolsa cairia do céu para completar o romance. Tenho entrado pela madrugada para dar conta, mas o grande problema é que ao amanhecer tenho de correr atrás do vil metal para as contas caseiras.
Difícil, né?
Eu não sei como poderíamos batalhar uma ajuda aí mensal pelo menos até dezembro. Se você puder ajudar, eu lhe agradeço a empeleita.

Anônimo disse...

meu chapa, tenho visto, em outras plagas é claro, esse tipo de bolsa, quando o escritor recebe pra ficar escrevendo, aqui no pará nada sobre, mas não custa tentar
comecemos pela Nova Deli daqui?
retorno-te logo, logo
leminski

Anônimo disse...

...e o pior é que o futuro veio, mas com os seus dragões de ferro.
ZéPedro.