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quinta-feira, 15 de maio de 2008

“Modo de ver para fazer desaparecer”

Enquanto em Marabá a data que assinala os 120 anos da lei de libertação dos pretos passou, digamos, literalmente em branco, nesse dia 13 de maio cerca de mil pessoas foram às ruas de Araguaína (TO) em marcha pelo fim da escravidão moderna e da injustiça social no campo. Só para lembrar, desde 1995 - quando as ações do grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) foram lançadas - até hoje, mais de 28 mil trabalhadores já foram libertados no Brasil. De qualquer forma, a manifestação de Araguaína não cuidou da exclusão social do negro, como seria de se esperar em razão da data comemorativa. Entre nós, contudo, pelo menos a Professora de História no Ensino Médio e Doutoranda em História pela Universidade Federal do Goiás (UFG), Idelma Santiago, produziu um texto instigante e elucidativo em que, segundo ela, não se está discutindo a questão do trabalho “e sim a questão da presença/reconhecimento dos afro-descendentes na construção da identidade nacional.” Leia o trabalho a seguir. “Em 1894, Nina Rodrigues, médico defensor das teorias raciais com base em modelos darwinistas sociais, disse que “se um país não é velho para se venerar, ou rico para se fazer representar, precisa ao menos tornar-se interessante”. Naquele contexto, mediante os recentes acontecimentos da abolição da escravidão e a proclamação da república, as elites brasileiras se preocupavam em resolver o “problema” da identidade da nação. A solução foi a passagem de uma visão da miscigenação como o “espetáculo” e o laboratório curioso e degradante das raças para a positivação da mestiçagem, através da construção do “mito das três raças” como a grande representação nacional. O tema da raça sempre ocupou uma centralidade nos discursos de identidade nacional no Brasil. Assim, temos um país que se define pela raça, numa perspectiva etnocêntrica – a metarraça mestiça. No Brasil, os ideais de identidade nacional, fundamentados na unidade política e na homogeneidade racial, sedimentaram na sociedade o que Florestan Fernandes definiu como preconceito retroativo, isto é, um preconceito de ter preconceito. Também, nessa forma de racismo, os negros são visibilizados a partir de predicados que explicam a sua exclusão do modelo de cidadão e sociedade definidos à sua revelia e são invisibilizados em suas reais necessidades, seus aportes à formação sociocultural brasileira, porque se quer garantir um tipo de sociedade hipoteticamente harmonizada. E a maldição da cor? A cor da pobreza? A demonização e inferiorização das práticas cultural-religiosas negras? Esses são temas interditados ao debate na sociedade brasileira. Aqui, as desigualdades sociais foram transformadas em marcas de diferenças essenciais. A conclusão da pesquisadora Lilia Schwarcz é de que, no Brasil, desde a abolição, a discussão racial abortou o debate sobre as condições de cidadania no país, naturalizando diferenças sociais, políticas e culturais, ganhando os locais de vivência cotidiana e a esfera das relações pessoais. Segundo Dalmir Francisco (2000), na compreensão sobre o fenômeno racial e étnico no Brasil, o modo predominante de ver-o-negro é o “modo de ver para fazer desaparecer”. A ideologia da comunidade tangida pela harmonia das raças visa fazer desaparecer o outro que deverá diluir-se, misturar, desfazer-se. O negro, na ideologia da mestiçagem, não é mais (foi escravo), não permanece (está se diluindo pela mestiçagem) e que não será, pois estará diluído (lavado) na futura metarraça. O questionamento dessa conservadora narrativa do Brasil ganhou força nos anos 70 do século XX, quando emerge um modo de ver o negro como sujeito de sua história e destino, corroborado, nos anos 80, pela expressão cultural-religiosa e artística dos afro-brasileiros. Certamente, pesa-nos a história de “elogio” da mestiçagem sincrética, da cordialidade e da democracia racial. Mas, a questão da diferença cultural recoloca a problemática da fronteira interna da nação, porque o problema da diferença cultural não é mais uma questão da relação com “outro” povo, mas uma questão da “alteridade do povo-como-um” (Bhabha, 2003). Assim, são nossas vozes – de afro-descendentes -, nesses 120 anos, as contra-narrativas da nação que rasuram suas fronteiras totalizadoras. E, para além do “interessante”, enquanto mestiço e exótico – mistura fascínio e medo -, participamos do jogo de construir a nação e também de sua divisão, apresentando nossa diferença, nossas significações marginais e nossas condições desiguais.”

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