Esses
dias fui ao Shopping em Marabá assistir ao filme Serra Pelada, na segunda ou terceira
seção aberta ao público, no novo único cinema da cidade. A euforia era grande,
assim como a expectativa diante daquele momento, para mim, histórico. No cinema
lotado, saltavam aos olhos vários senhores de idade que, mesmo antes do filme
começar, lançavam frases do tipo: “eu participei dessa história”. Quando o
filme começou, concentrei-me em seu enredo, mas em alguns momentos percebi
vozes narrando acontecimentos por parte de quem participou deles na vida real e
ali estavam. O que era incômodo para alguns, tornou-se a cereja do bolo para
mim: o cinema estava repleto de personagens.
Com
o desenrolar da película comecei a questionar se aqueles que o assistiam e protagonizaram
esse momento da história do Brasil, realmente poderiam se sentir partícipes
daquela narrativa. Entretanto, durante a exibição um fato era inquestionável:
todos estavam atentos ao clima tenso, à fotografia impecável, à contagiante
trilha sonora, ao formato hollywoodiano (em tempo, personagens, roteiro...)
apresentado. Realmente é de perder o fôlego, um excelente entretenimento.
Mas
aqui não quero me restringir ao filme em si, pois não sou crítico de cinema.
Embora tente tatear em alguns assuntos cinematográficos e faça do filme o meu
pretexto, aquilo que desejo fazer com este texto é uma análise de um
sobrevivente destas bandas do Brasil que assistiu a um filme que trata de sua
realidade próxima.
Antes
de qualquer argumento é necessário que se diga: o filme realmente prende a atenção!
E por ser bom é que tem uma capacidade magistral de construir, talvez pelo seu
tom documental, uma marcante narrativa histórica ficcionada sobre Serra Pelada.
E como toda narrativa histórica, a maneira em que é contada, quem a conta,
quando e quantas histórias são contadas, quais são seus protagonistas; isso
tudo, depende de maneira direta do poder, das relações que constroem as formas
de narrar.
Uma
película de orçamento superior a 10 milhões de reais e pretensões hollywoodianas,
com um baita patrocínio da Caixa Econômica Federal (Instituição financeira
fundamental na história do garimpo), além da Petrobras, de uma empresa de
corretagem, inclusive de ouro, entre outras e, ainda, distribuído, além de
outras distribuidoras, pela Globo Filmes, logicamente que seria uma trama que
centralizaria pontos da história deixando outros sem explicação, ou mesmo no
esconderijo da memória dos garimpeiros.
Mas
para entrar definitivamente no filme, o primeiro ponto que gostaria de
ressaltar é o lugar de onde se constrói a narrativa. O filme conta a saga de
dois amigos que saíram de São Paulo para se empanturrar no eldorado amazônico,
o que, aliais, concretiza-se depois das várias reviravoltas que o filme dá: um
final feliz, portanto. Isso pode de imediato não parecer muita coisa, mas é
fundamental, pois por essa perspectiva de ver a história, define-se de onde se
fala e do que se deseja falar. Os olhares sobre o lugar não vêm de um
nordestino que chega a pé, ou mesmo de um “furão” (sujeitos conhecidos por
entrarem de forma clandestina no garimpo, furando o bloqueio da Polícia
Federal), mas do professor de São Paulo.
A
história é, portanto, um acessório de luxo para um trailer que pretende mostrar
como um lugar pode piorar um homem, isso tudo, com pitadas de um enfadonho
romance e uma exagerada dose de faroeste.
O
fato de nenhuma cena ter sido gravada em Serra Pelada, ou mesmo no município de
Curionópolis ou Marabá, sendo apenas Belém filmada no Pará, demonstra o
sobrevôo alto feito pelo filme em relação à história. A recriação da vila do
“30” em cidade cenográfica, ou mesmo da própria mina, não seriam problemas se
isso não significasse um distanciamento em relação ao lugar e as pessoas do
lugar, suas histórias, suas análises, suas vidas...
O
segundo ponto que gostaria de ressaltar advêm do primeiro: a covardia histórica
do filme. Várias são as lacunas e os apagamentos e acredito que tudo o que não
se mostra por opção é devido ao que por decisão se quer mostrar.
Qualquer
um que queira entender um pouco mais de Serra Pelada deveria compreender o que
foi, antes da descoberta do garimpo, a Guerrilha do Araguaia. Não há como falar
de Serra Pelada sem tocar nesse fato marcante e um tanto ocultado da História
do Brasil. Ainda no início da década de 1970, pelos caminhos do Araguaia, um
movimento organizado pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B) contra o regime
militar brasileiro eclodiu entre os estados do Pará, Maranhão e Tocantins (na
época Goiás) e trouxe para a região um enorme aparato militar de repressão,
aparato este até hoje presente na paisagem de Marabá, na forma de brigadas,
batalhões... E é nesse cenário que a Figura de Sebastião Curió assume
relevância, pois o mesmo comandará a repressão ao movimento. Seis anos após
vários assassinatos e o aniquilamento das lideranças do movimento, em 1980, o
que significaria para o Governo Militar do Brasil a descoberta da maior mina de
ouro do mundo nas proximidades do Araguaia e de lugares onde havia uma
efervescência de um movimento dos posseiros pela terra? A resposta é óbvia:
financiamento do “perigo vermelho”! Por isso, o mesmo sujeito que agiu contra a
guerrilha virá com a intenção de fechar o garimpo: Sebastião Curió, que também
não é personagem nem ficcionado no filme.
A
operação frustrada de fechamento do garimpo gerou um aparato de vigilância, controle
e punição comandado por Curió no local. E, nesse particular, os relatos mostram
que a maior violência praticada no garimpo era a dos próprios policiais. São
vários os relatos de chacinas, impedimento para a organização de cooperativas e
de mortes envolvendo o aparato de repressão, com a intenção de deixar o clima
cada vez mais tenso, que caminhasse ao fechamento do garimpo para os
garimpeiros. Logicamente que é preciso que se diga que alguns grupos
internacionais ligados à mineração, associados ao Estado naquele momento, não
viam com bons olhos aquela concentração humana, mas o fato é que não existe
nenhum personagem de destaque no filme que esteja ligado ao Estado.
O
faroeste amazônico que alguns matam por prazer, outros sem motivo nem planejamento.
Os fatos mostrados pelos fatos para que o sangue seja protagonista das cenas é
uma imagem um tanto distante do que a memória histórica dos garimpeiros revela.
Não que a violência não existisse, mas não eram apenas as rixas entre donos de
barranco, ou o frenesi da ganância que matavam. Não podemos esquecer o massacre
de São Bonifácio que ocorreu em Marabá na ponte sobre o rio Tocantins, em 29 de
dezembro de 1987. Conflito entre os garimpeiros de Serra Pelada e a Polícia
Militar do Pará com o auxílio do Exército Brasileiro que registrou setenta e
nove garimpeiros desaparecidos, não sendo identificada nenhuma morte por parte
das tropas da Polícia e do Exército. Talvez as melhores metáforas do faroeste
amazônico sejam o conjunto de massacres, protagonizados pelo Estado e sua
polícia, que aqui deixaram marcas em guerrilheiros, em garimpeiros, em sem
terra...
A
terceira linha de raciocínio que gostaria de retratar é uma contradição bem
simples e evidente: a Caixa Econômica Federal, principal financiadora do filme,
recebeu, segundo o Banco Central, mais de 900 quilos de ouro extraídos de Serra
Pelada, mas não repassou o dinheiro aos garimpeiros, que há mais de vinte anos
cobram mais de R$ 400 milhões deste banco, que nega o montante do débito e tem
conseguido, por meio de manobras judiciais, retardar o pagamento. No filme,
quando se fala da Caixa, apenas se mostra o preço justo pago pelo ouro... Mais
uma vez coloca-se o curativo para não mostrar a ferida aberta.
O
último ponto que gostaria de deixar para a reflexão é a falta de preocupação do
filme com Serra Pelada. Embora seja demarcado temporalmente, talvez o filme
pudesse, mesmo que através de metáforas, tratar da dramática situação atual do
garimpo... Lógico que seria pedir demais diante de todos os argumentos
anteriores. Mas o fato é que vivemos hoje uma nova corrida do ouro em Serra
Pelada comandada pela empresa canadense Colossus que conseguiu o direito de
lavra da mina através de acordo com a Cooperativa Mista dos Garimpeiros de
Serra Pelada, acordo que começou com a distribuição dos minérios extraídos em
51% para a empresa e 49% aos garimpeiros, mas que se modificou em favor da
empresa posteriormente e hoje está envolvido em um conjunto de denúncias do
Ministério Público, que encontrou depósitos da empresa em nome particular de
garimpeiros, bem como irregularidades nas eleições da cooperativa associada. De
todo modo, o clima é de tensão total, não sem razão um acampamento de mais de
quatro mil garimpeiros envelhecidos foi montado em frente ao portão central da
empresa que cercou a mina e opera com ajuda de escoltas armadas e da própria
tropa de choque da polícia militar. Esse atual contexto não parece objeto de
preocupação de diretor, dos atores...
Como
os domínios de representação que são criados pela indústria cinematográfica criam
verdades e difundem uma narrativa histórica única dos lugares, este texto é
apenas para dizer: outras histórias devem ser ditas e ouvidas de Serra Pelada.
Raimundo Gomes Neto
Bruno
Malheiro, 19 de novembro de 2013.
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