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quinta-feira, 6 de novembro de 2014

O dia que a morte passeou na rua de casa



                                                                                                                                     
O moleque brincava sozinho à porta da casa, entretido com petecas na rua empoeirada e ao sol da manhã, quando sentiu um arrepio. Ergueu a cabeça e viu o homenzarrão: era branco, forte, as pernas da calça suja de lama enroladas até ao joelho. Na mão esquerda, o par de botas rangedeiras. Na direita, um punhal longo e estreito que ele tentava esconder atrás do braço e que lhe ia da mão cerrada à ponta da omoplata. A cabeça erguida, desafiador, passou sem pressa entre a oficina mecânica e o estaleiro de Mestre Leobaldo à ilharga do barracão de castanhas coberto de chapas de zinco, as únicas construções da margem esquerda da rua que dava para o rio. Atarefados, carpinteiros e mecânicos não lhe deram atenção. Seus ombros largos desapareceram assim que ele alcançou o muro de tijolos à amostra do cemitério, pouco adiante do Canto Verde. Vinte minutos mais tarde ele voltou: a cara fechada, arma na mão. Mal sumiu na esquina ao fim do quarteirão, à esquerda, atrás dele veio apressado um policial militar, as botas reluzentes, a farda cáqui, o fuzil com baioneta junto ao peito. Desta vez os trabalhadores saíram à rua, curiosos. Mais um instante, um grupo de militares surgiu, a trote, vindo da Cadeia de São Luiz, quase ao fim da rua, depois do cemitério. Eles também tinham pressa e carregavam fuzis. Levou tempo para que a multidão se dispersasse em meio ao burburinho.
Uma hora depois, um tumulto formidável sobressaltou os moradores. Sob o sol ácido, e vindas do extremo distante da rua, lá do Alto do Bode, centenas de pessoas caminhavam aos gritos de revolta ao redor dos praças tensos, de armas engatilhadas, em torno do gigante descalço, agora a carregar ao ombro o corpo de uma mulher robusta, muito branca, os cabelos louros e curtos manchados de barro e do sangue ainda a fluir do colo. À medida que o cortejo surreal desce rumo à cadeia e ao cemitério, cresce a indignação entre os que ouvem a história: atocaiado na trilha que levava ao porto, onde dezenas de lavadeiras passavam o dia inteiro de molho entre roupas encharcadas com sabão em barra e macela da beira, o grandalhão esfaqueara até à morte sua companheira e ainda fora avisar a polícia. “Assassino”, “covarde”, “matem esse monstro”, avançava a turba sobre os policiais. Três vezes o homenzarrão deixou cair pesadamente o corpo da mulher, e três vezes os aguilhões de baioneta o fizeram juntá-lo. Um desconhecido adiantou-se e carregou nos braços as pernas ainda quentes da infeliz. O cemitério, para onde ela foi levada aos trancos, encheu-se de gente. O mesmo sujeito que ajudara a carregar a mulher, pôs-se a abrir a cova quando o assassino, afogueado pelo sol do inferno, ancorava o corpo na enxada. Sem ao menos um lençol a embrulhá-lo, o corpo foi jogado no túmulo. Um urro de dor, angústia e frenesi, acudiu a multidão. Mulheres choravam; boquiabertos, inúteis, os homens entreolhavam-se, tossiam, lágrimas nos olhos de alguns. E de repente um silêncio aterrador desabou sobre o mundo, o cemitério, a multidão, o assassino, as fardas cáqui de reluzentes botões dourados, as flores cobertas de poeira nos sepulcros, o rosto lívido dos militares. Ouvia-se apenas o ruído do barro, um barulho abafado, profundo, a ressonância do barro a cair das pás sobre o corpo desprotegido, a carne ainda sangrenta a retornar ao pó.   

Um comentário:

Laércio Ribeiro disse...

Meu caro Ademir: Quantas saudades das tuas letras, arranjadas em contos como este que, de tão belos, são capazes de tirar o fôlego e arrancar suspiros mesmo dos mais insensíveis. Que bom que tua verve ainda pulsa. Um forte abraço.