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domingo, 18 de março de 2007

Da loucura como método cartesiano

Erasmus de Roterdam (1466?-1536), a respeito de Elogio da Loucura - seu livro célebre -, diz em carta ao amigo Tomas Morus não duvidar “de que hão de surgir zoilos mal intencionados, os quais dirão serem estas futilidades indignas de um teólogo, e estas sátiras contrárias à modéstia cristã”, e por isso, “censurar-me-ão, talvez, por fazer eu renascer a malignidade da antiga comédia e por morder, como Luciano, a toda gente”. Como não sou Erasmus nem teólogo – aliás, sou pagão – e pouco se me dá se meu verbo morde a toda gente, ando mais na companhia de Schopenhauer (1788-1860) e sua defesa do livre arbítrio com todas as conseqüências que dele possam advir. Todo homem, dizia o filósofo de Dantzig, apenas faz o que deseja e, portanto, age sempre de modo necessário. E a razão está no fato de que ele é já aquilo que quer; porque tudo o que faz decorre naturalmente do que é. Isso posto, vamos ao que importa (ou não importa, dependendo de como se vê a questão, ou daquilo que se é), a começar pela loucura e da necessidade urgente de um corte epistemológico na razão para se estudar, sem pré-conceitos, o uso do non-sense como práxis da não-razão (cogito, ergo sum insanus). A loucura, afinal, não é estranha à minha origem. Uma vez, há muitos anos, meu irmão mais novo enlouqueceu. Era um surto manso e temporário, mas ele deu de subir no telhado e de lá cantar boa parte do dia tiarrancucu-tiarrancucu, achando que era pombo. Se o fato causava risos, no começo, depois os vizinhos tentaram acertá-lo com baladeiras, aporrinhados com a cantoria sem fim, até que quebrei a cara de alguns em nome da moral e dos bons costumes. Se há uma coisa perfeitamente detestável são caçadores de pombos. Mas quando um gato tentou pegá-lo, aí subi eu mesmo no telhado e coloquei o pombinho roxo numa gaiola até que a crise passasse. Não me pergunte o que fiz ao gato, mas era carnaval e ele saiu comigo na escola de samba do Cabelo Seco, onde eu tocava tamborim. Ainda em tempos remotos, um tio enlouqueceu duas vezes: na primeira, corria de casa até à esquina do cemitério e ficava, como Anchieta, o louco de batina na praia de Santos, de Copacabana, ou sei lá de onde, a escrever com um graveto no chão. Dizem que meu tio escrevia sempre a mesma palavra – Calu, o nome da amada que, traíra, o traíra -, do que a plebe ignara e sem amor lhe fizera uma música dizendo que Calu, aquela que não tirava os olhos verdes de riba d’eu, o trocara pelo Lulu, o ateu. Na segunda recaída, anos e anos depois, o tio meteu um cartucho 20 na cabeça e todas as perturbações, novas e antigas, o abandonaram para sempre. Agora, quem endoidou fui eu. Comprei um radinho à pilha, desses que cabem no bolso e vêm com fones de ouvido, e ando para cima e para baixo de óculos escuros, ouvindo brega, axé e música sertaneja. Ouço-as nas rádios locais, que é só o que toca, e depois fico rindo à-toa ouvindo programas evangélicos. A loucura só não é completa ainda porque tenho resistências a ver na tevê os programas de Tom Cavalcanti, João Cléber, Hebe, Sílvio Santos, Faustão, pastores eletrônicos, Big Brother, as novelas da Globo, da Band e do SBT, e o jornalismo televisivo que se faz em Marabá. Mas eu chego lá, um dia, não sei quando, mas chego; certamente já louco varrido. Corro esse risco, para todo o sempre, todo santo dia. Não, não me recordem a falta de um propósito nesta busca da insanidade. De fato, eu pretendo, se me permitem o paradoxo, por adotar a loucura como método ou processo para compreender o cotidiano que vivenciamos, creio, há mais de década. Despido de senso crítico, quem sabe enfim eu possa compreender como é que o município tornou-se um caos administrativo, carente de representatividade política, entregue a despreparados de toda espécie e origem, sem eira nem beira, hostis à inteligência e à divergência, e por isso mesmo capazes de infligir toda sorte de males à comunidade.

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