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domingo, 8 de abril de 2007

A arte em grãos: Chagas Filho

Francisco Chagas Vitorino dos Santos Filho, o Chagas Filho, é jornalista e pedagogo, nascido e criado em Marabá, no Pará, em 1975. em 2000, venceu o III Festival de Conto da Prefeitura de Marabá com “O juiz”, uma historieta curiosa e surpreendente, mas bem representativa da sua paixão pelo cotidiano e pela loucura do dia-a-dia. O conto integra a pequena coletânea “Dez mentiras bem contadas”, ainda inédita. A seguir, dois contos de Chagas Filho. O juiz Nunca consegui juntar aquela segunda-feira no meu esquecimento. Era impossível a quem passasse pela Rua da Paz, logo de manhãzinha cedo, não notar o imenso cartaz, escrito as palavras “Ladrão çafado”. E ainda escreveram errado. Bem na porta do juiz Dionísio Sereno. Mas, logo ele, conhecido como Dionísio Braço de Ferro, que durante mais de vinte anos julgara com imparcialidade todos os acontecimentos na desprezada cidade de Itupiranga, aqui bem perto de Marabá. Difícil acreditar que alguém tivesse motivos para não gostar dele. Pois é, chamar a Itupiranga daquela época de cidadezinha desprezada é o cúmulo do eufemismo. Na verdade o lugar era um buraco. Eu que nasci e fui criado lá que o diga. A única coisa boa que existia por aquelas bandas eram os pés de manga. Agora não há mais quem os encontre. Ah, sim, o pessoal também gostava muito do juiz. Qualquer besteira, como roubo de galinha ou de porcos – os mais comuns –, era sempre levada a ele. Não passava nem pelo delegado. É, sim senhor, ele angariou o respeito do delegado, a simpatia do prefeito e até a aceitação do presidente da câmara municipal, aquele velho rabugento. Ainda mais depois que deixou de morar na capital do Estado e comprou uma casinha na Rua 14 de Julho, passando a visitar a família em Belém somente nos finais de semana. Pois bem, voltemos ao cartaz. Quando Dionísio acordou e viu aquele insulto pendurado na parede, retirou o pedaço de papel, olhou fixamente para o que estava escrito e até sorriu ao notar que a palavra “safado” estava com a grafia errada. Depois, olhou em volta e viu que algumas pessoas o observavam. Então fechou a cara e seguiu para o fórum. De lá, mandou chamar o delegado Quintanilha e pediu que ele tomasse providências para descobrir quem havia colocado o cartaz difamador na porta de sua casa. Eu ajuntei aquele episódio nas minhas lembranças e me recordo como se fosse ontem: o prefeito, o padre, alguns rábulas e até o promotor, que só aparecia de vez em quando, foram lá demonstrar apoio ao magistrado e dizer que também iriam descobrir quem foi o vândalo que tentou caluniá-lo. Naquela mesma época, havia sido solto o fazendeiro Zé da Prata, acusado de matar o colono João Gracinha, amigo particular do vereador Jeová, presidente da Câmara e única pessoa na cidade que não morria de amores pelo juiz. Na verdade ele só o aceitava, como eu já disse antes. Aliás, dizem que ele só gostava mesmo da mulher, dona Graça. Deus a tenha em bom lugar. Santa mulher aquela, suportou durante 15 anos a convivência com Jeová, que de Jeová só tinha o nome. Pois bem, o vereador passou a cismar do cartaz. “Alguma esse juizinho aprontou”, imaginava ele, que àquela altura já estava uma arara com Dionísio por causa da soltura de Zé da Prata. Maquiavélico que só ele, o edil foi até o fórum conversar com o juiz, dizendo-se também chocado com o acontecido e prometendo até criar uma lei municipal que punisse praticantes de crimes como aquele, com prestação de serviço à comunidade. Mas, no fundo, Jeová queria mesmo era saber quem poderia ter colocado o cartaz na porta de Dionísio, e qual não foi sua surpresa ao ouvir do juiz um áspero pedido para ir embora. E por pouco o vereador não viu também um palavrão desatar-se da boca do magistrado. Mas, logo o juizinho, que sempre lhe fora tolerante, mesmo na época em que os dois não se cheiravam. Por que raios ele o tratara mal agora? Justamente quando o vereador lhe visitara como amigo! - “Existe algo de podre no reino da Dinamarca”, imaginou. Imediatamente, Jeová chamou dois capangas e montados a cavalo, como no velho Oeste, foram até a fazenda Macaxeiras, na época ainda em Marabá, onde Zé da Prata estava escondido, e lá chegando encontraram o assassino bebendo em um bar. Ao notar a presença de Jeová, Zé ainda ameaçou correr, mas foi seguro pelos capangas do vereador, enquanto o próprio Jeová mandou que ninguém se metesse na confusão. Quem se importa. Ninguém gostava mesmo de Zé da Prata. Cerca de dez quilômetros dali, Jeová meteu o trezoitão na cabeça de Zé da Prata e mandou ele rezar, enquanto seus capangas cobriam o infeliz de chutes. Na verdade, o vereador só queria que Zé confessasse o que fez para ser solto, já que a cidade inteira sabia que fora ele quem matou João Gracinha. Debaixo de tanta taca, o desgraçado contou tudo: assassinou João Gracinha porque este não queria lhe vender dois alqueires de terra que faziam fronteira com sua propriedade e depois da morte do desafeto, comprou facilmente as terras da viúva, que amedrontada foi embora dali, levando os 8 filhos. Ele contou também que, para tirá-lo da cadeia e responder o crime em liberdade, o juiz Dionísio lhe pediu cem cabeças de gado e mais a metade da propriedade de João Gracinha, que há muito o interessava. O homem até mostrou as promissórias e os recibos de compra e venda assinados pelo juiz. O negócio foi tão absurdo que não houve intermediação nem de advogado para pedir o alvará de soltura. Coisa de cidade do interior. Mais que depressa, Jeová levou Zé da Prata direto para Marabá e de lá pegaram um ônibus e foram bater em Belém, onde o vereador, usando sua influência, entrou na sala do juiz Endelmar Melgaço, presidente do Tribunal, como quem entra num boteco, e fez o acusado repetir tudo que dissera antes. Depois de ouvir atentamente e com os olhos arregalados, o desembargador retornou com o vereador até Itupiranga e chegou de noite, dois dias depois, ficando na casa de Jeová, de onde mandou chamar o delegado Quintanilha e deu-lhe ordem para prender o juiz Dionísio, de manhã cedo, lá mesmo no fórum de Itupiranga, sob acusação de corrupção ativa. A cidade inteira (se bem que não era muita gente) se ajuntou na frente do modesto prédio do fórum para ver o homem saindo preso, embora não estivesse algemado, afinal de contas muitos ainda lhe deviam alguma consideração. E lá estava ele, que sempre fora tido como um homem acima de qualquer suspeita. Dionísio olhou para as pessoas ao seu redor e, morto de remorso e de vergonha, tomou a arma das mãos de um policial e se matou com um tiro no ouvido. Bem no meio da praça. Eu que assisti a tudo de cima de um pé de manga, nunca me esqueci do alvoroço causado pelo gesto tresloucado do juiz. Mas tudo é coisa do passado. Agora, Jeová estava de alma lavada. Seu desafeto foi desmascarado e ainda se matou, vingando com as próprias mãos a morte de João Gracinha, muito querido naquela cidadela; enquanto Zé da Prata voltou para a cadeia, onde foi executado sete meses depois por quatro dos filhos de João Gracinha, que invadiram a cadeia e mandaram o homem pra debaixo da terra. Depois daquilo, Jeová passou a perder tempo todos os dias olhando para a mancha de sangue na praça, a cada dia menos visível, e se perguntando quem teve a corajosa idéia de colocar aquela bendita placa na porta do juiz. Afinal de contas, não fosse a placa, nada teria sido descoberto. Esse também é um dos pensamentos que mais me impressiona até hoje. Me dá friagem e me machuca as idéias só de imaginar que tudo começou no campinho de futebol. Isso mesmo, acredite se quiser. No domingo, um dia antes do cartaz aparecer na porta de Dionísio, nosso timinho “Itupiranga Mirim” perdeu a decisão do campeonato com um gol de pênalti que não existiu. E para completar nossa desgraça, o juiz da partida, seu Arlindo alfaiate, expulsou dois colegas nossos, sem motivo nenhum. Todo mundo viu a roubalheira. Juquinha, um dos expulsos e recém-chegado à cidade, era o mais indignado da turma. Ele até prometeu que no outro dia bem cedo iria colocar um grande cartaz na porta da casa do juiz, chamando ele de ladrão “çafado”. E olha que a gente bem que tentou explicar para ele que “safado” era com S, mas, pelo visto, não adiantou, o menino tascou o “Ç” e, o que é pior, no endereço errado. O minador de corpos A caminhonete chegando àquela hora da noite não era coisa normal, mas como a polícia não tem hora pra trabalhar, ninguém deu importância. “Que é que foi sargento?”, gritou seu Zé, lá da esquina. “Nada, não, só uma diligência”, respondeu sargento Guerreiro. “Então chega prá cá e vamos jogar um baralho”, chamou. “Hoje não, que eu estou muito cansado, mas amanhã quem sabe…”, desconversou o policial, com a farda meio suja da poeira, e depois entrou na delegacia junto com os outros dois. “Olha só, diz que tá cansado e vai prá dentro da delegacia”, observa seu Zé. Tentando espiar a carta que estava na mão dele, Clementino solta uma fofoquinha: “Parece que ele tá dormindo é lá mesmo... Brigou com a mulher”, cochichou. “De novo!”, responderam os outros em coro, para em seguida voltar ao baralho que se estenderia por quase toda a noite. Depois disso veio o dia, outro dia, outros dias e enfim o cheiro… O cheiro forte e podre convidava as crianças a não se aproximarem do local, mas sabe como é: criança vai aonde o passarinho está, e aí, não deu outra, acabaram encontrando um cadáver, já decomposto, irreconhecível e sem roupa. Depois da gritaria, a carreira de volta para casa, deixando as gaiolas pelo chão. Não demorou muito e todo mundo de vila Santana foi lá só para conferir de perto o cadáver no meio do matagal. E tinha gente querendo mexer, outros querendo jogar terra em cima. Uma “festa” só. “Chama a polícia”, gritou seu Zé. “Se o defunto num tem dono, a polícia tem que vim aqui tirá o corpo pra fazê inzame”. Pareceu ser a decisão mais acertada. Dito e feito: cinco horas depois a equipe do sargento Guerreiro chegou ao local na velha toyota empoeirada. “Vamo disobistruino a ára!”, pediu com aquela “gentileeeza”. Enrolaram os restos do homem numa lona preta e colocaram na carroceria da caminhonete e levaram para Marabá. “Tem um tal de ‘ML’ lá que é onde eles bota os morto que num tem dono”, explicava seu Zé para a multidão, enquanto todos deixavam o local e seguiam para a rotina de suas vidas. Mas, como seguir para a rotina, se na semana seguinte outro corpo apareceu no mesmo lugar, desta vez encontrado por um casal de namorados que estava lá fazendo sabe-se muito bem o que. Agora o espanto foi maior que da primeira vez e menor que da terceira. Três corpos em três semanas. O intrigante é que não era ninguém da vila. Aliás, parece que não era ninguém de lugar algum, pois nenhum dos mortos foi identificado e todos acabaram sepultados como indigentes. A pequena vila agora vivia cercada de policiais militares e civis, revistando as pessoas nos bares, nos comércios e nas estradas ramais. O pior não era isso. O pior era o cheiro de podridão, que impregnava o centro da vila, ali perto da delegacia e também do bar do seu Zé. “Seu Zé, uns dois dia antes do primêro morto aparicê eu já tava sintino chêro ruim por aqui”, dizia Clementino. “É homi, eu num quiria falá nada, prá ninguém depois num vim me chamá de doido, mas óia que eu e a muié tava prá num agüentá mais a catinga da carniça”, respondeu seu Zé. “Até o sargento Guerreiro anda fedeno só a coisa pôde... apesar de que ele nunca foi cheroso mermo”, comentava Clementino, já caindo na gaitada com o amigo. “Isso é bobagem minha gente”, disse Laércio, funcionário da Sucam que sempre estava por ali. “É que nós estamos todos impressionados com esses corpos encontrados aqui na nossa vila”. Não, não foi só impressão. O cheiro era forte, sujo e seco, assim como as manchetes do jornal e o noticiário da TV e do rádio, que davam conta de um assalto ocorrido em Marabá, havia cerca de um mês. “Ói só seu Zé! Aqui no jornal de papel tá dizeno que quatro ladrão roubaram quinhentos mil do banco e sumiram no mundo”. “E tu num sabia não homi. Foi até a turma do sargento Guerreiro que pissiguiu eles até lá perto do porto da balsa, mas parece que os bandido era tubarão grande, pois passaram pro lado do Goiás e deixaram o sargento com a camionete no prego. Clementino alfineta: “Eu tô achano que o sargento não ficou no prego não. Ele tava era com medo de corrê atrás dos homi, pois se eu mermo vi ele voltano com a bicha boazinha”. Nisso, Terêncio entra correndo no bar: “Eu não quero atrapaiá a cunversa de ninguém, não, mas tem oto homi morto lá no matagal”. Novamente cumpriria-se o mesmo ritual: polícia, IML, fotógrafos, curiosos e mais um indigente sepultado. Não fosse um detalhe, este corpo teria o mesmo destino dos outros. O detalhe era uma foto dos restos mortais do homem, que foi tirada no local e atestou uma tatuagem em forma de estrela. Corpo identificado: Carlos Alexandre Jaborandi, vulgo “Jaburu”, um dos envolvidos no assalto ao banco em Marabá, dias atrás. “Ah, então era bandido? Tem mais é que morrer!”, comentava-se na vila, no dia seguinte ao fato. Lá no bar do seu Zé, finalmente o sargento Guerreiro apareceu pra tomar umas e bater um papinho – coisa que não fazia há muito tempo. Parece que os homi morto era tudo assaltante, né sargento?”, perguntou seu Zé, puxando assunto, pra ver se o policial se animava, já que parecia triste. “Se é o que tão dizendo...” “Mas, autoridade, se eles era tudo caboco peitudo, cuma é que se dexaram pegá assim?” “Isso aí eu num posso dizê, porque é segredo da profissão, mas que eles era peitudo, ah isso era. Pois morrero, um a um, sem contá onde tava o dinheiro do roubo... E deixa eu ir embora pra casa, que eu não preciso mais dormir na delegacia”. Parece que eu perdi um pedaço da história, e o sargento perdeu uma coisinha um pouco mais... concreta.

2 comentários:

Anônimo disse...

Interessante. É do tipo rir pra não chorar.
Bjs.

Ademir Braz disse...

O Chagas Filho é ótimo. Vou ver se ele tem outras criações.