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quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Pesada. Medida. Condenada.

No blog do Manuel Dutra


A Casa da Fartura, o Natal e os dados do IBGE

Avenida Bernardo Sayão, Belém (Foto: MDutra)
Belém do Pará, Pará de Belém e os grandes que em ti mandam: levantem-se e façam justiça ou, então, mudem de nome. Pois, em algum momento, os famintos paraenses de Belém, de Santarém, de Marabá, de Benevides, de Marituba, de Ananindeua, de Jacundá, de todos os quadrantes encontrarão as razões e buscarão os meios de fazer valerem os sentidos das palavras Natal, Pará e Belém.

Beit Lehen, em hebraico, significa Casa do Pão, um lugar onde todos saciam a fome. Daí vem a palavra Belém e, às vésperas deste Natal de 2011, fiquemos apenas com duas Belém: uma lá na Palestina, onde a história nos diz que nasceu Cristo, e esta outra, do Pará, onde a fé cristã foi introduzida há muito tempo. Lá, a pobreza e a guerra sem fim, aqui a miséria que todos vemos e que o IBGE revela com dados ainda mais assustadores do que aqueles que imaginamos pelo que vemos todos os dias.
Duas cidades: uma, símbolo histórico da contradição ao egoísmo e à guerra e mesmo assim palco de ambos; outra espaço de uma desigualdade presente e crescente, onde o pão desta casa não sacia a todos, ao contrário, deixa mais da metade dos belemitas/belemenses famintos e desprezados.
Fiquemos só com a nossa Casa do Pão. A contradição daqui está nas compras de Natal, possíveis àqueles que podem saciar-se. As notícias sobre o Natal se concentram no consumo dos que têm como consumir e, raramente, na falta do pão que marca o rosto feio de centenas de milhares, uma feiúra produzida pela miséria e pela tristeza.
A palavra consumir tem um significado expressivo: Francisco Torrinha, em seu Dicionário Latino-Português informa que o verbo consumir tem, entre outros, estes sentidos originais: somar, acabar, gastar, esgotar, destruir. Por sua vez, o nosso Aurélio diz: consumir significa, originalmente, gastar, comer, mas também arruinar, dar cabo de, corroer até a destruição, devorar, destruir, extinguir pelo fogo, enfraquecer, abater.
Pois bem, estes sentidos são como que engolidos pelo “novo” significado que o Mercado dá a este verbo. O Mercado, que prostituiu a palavra Amor para lhe dar sentido inverso, como manifestação egoística, muda os sentidos de tudo que lhe interessa. Assim, o verbo consumir deixou de representar aqueles sentidos antes citados para ser a chama do ideal contemporâneo: comprar, comprar e comprar, seja lá o que for, a despeito da maioria daqueles que não compram o básico porque não têm o Valor de troca, não dispõem do dinheiro enfeitiçado exigido pelo deus Mercado. Mesmo assim, a sedução midiática mostra à exaustão a “felicidade” dos entopem os shoppings, “vivendo o Natal”. Inversão: o sentido histórico do Natal contradiz isso tudo, mas o deus Mercado inverteu as coisas, e o diabo passou a ser anjo, ao contrário da narrativa bíblica de que um anjo virou diabo.
E a noção de fartura não provém tão somente da palavra Belém, mas do termo Pará, que também significa abundância. No início era Pará-Guaçu que, na língua dos primeiros habitantes daqui tinha o sentido de Água Muita, Água Grande, ou seja, espaço vital, fartura de peixes, longe da fome. E o que é este Pará de 2011?
O pão que falta na mesa da maioria dos habitantes desta cidade que já se chamou de santa, Santa-Maria-de-Belém-do-Grão-Pará. Eis aí a junção de termos magnificando a grandeza e a fartura. E o que vemos hoje? Não é apenas o pão imediato que não existe na mesa e no prato da maioria, mas o pão da falta de um chão para morar, o pão da saúde pela falta de saneamento, o pão da escola decente para os filhos de milhares de paraenses. Falta o pão da segurança pública que redunda no interminável extermínio de milhares de jovens e adultos, envolvidos pela miséria das drogas e do desemprego ou do sub-emprego com salários os mais aviltantes.
Falta aos filhos desta terra o pão que é exportado aos milhões de toneladas pela Cargill pelo porto de Santarém, para saciar não propriamente a fome de outros povos, mas para saciar a ganância de lucro dos capitalistas chineses e vários outros. Falta o pão da carne por causa da exportação maciça de gado paraense para outros países, inclusive gado em pé, pelo norte e pelo sul do Estado.
Falta o pão do peixe (caríssimo em Belém e Santarém, por exemplo) porque as empresas de pesca jogam de volta à água, mortas, as espécies “imprestáveis” para as mesas japoneses que preferem o camarão rosa graúdo. E falta também o peixe por causa da ação devastadora dos atravessadores, nunca incomodados pelas “autoridades”. Falta o pão que é levado junto com os bilhões de toneladas de minério de ferro pelos 400 vagões do trem da Vale, deixando somente a fumaça para os paraenses do sul do Estado.
Falta o pão que é levado junto com os bilhões de KW da energia exportada pelas hidrelétricas daqui e toda esta Amazônia saqueada, deixando o povo faminto de eletricidade, pagando preços absurdos pela permanente interrupção de energia em suas casas e barracos. O pão da energia que é buscado “clandestinamente” pelos mais pobres no emaranhado caótico dos postes de distribuição.
Falta o pão-terra, a terra açambarcada por meia dúzia que deixam milhares de famílias de trabalhadores em “acampamentos” na beira das estradas, esperando a hora do cassetete baixas nas suas cabeças. Falta o pão da Justiça cuja ausência deixa livres os criminosos de colarinho branco que mandam matar trabalhadores apenas porque ousaram pedir o pão que lhes pertence. Falta o pão da decência, que deixa livres e alegres aqueles que, com mandato ou não, engordam com o roubo do pão que falta na mesa das crianças nas escolas públicas e tantas outras meses.
Mas estes todos estarão, na noite de Natal, vestidos de gala, em volta das suas mesas sempre fartas, embora o que ali sobra seja o aquilo que falta na mesa da maioria dos paraenses que o IBGE comprova morarem dentro da lama e da completa exclusão.
No sentido mais estrito da palavra consumir, é a maioria dos paraenses que está sendo consumida pela ganância dos donos do dinheiro e donos de tudo que entre nós tem Valor de Mercado. O povo está sendo, então, enfraquecido, devorado, extinto, abatido.
Contradições e contradições: isto tudo numa cidade e num Estado cujos nomes evocam a fartura, a grandeza e, por conseqüência, a felicidade...
Uma indagação: será que a multidão de paraenses vivendo em condições desumanas nas baixadas e favelas é maior ou menor do que aquela multidão que todos os anos caminha no Cìrio de Nazaré? Será que as grandes religiões também não estão ressignificando sentidos históricos de palavras como Natal, desatrelando a fé da realidade vivida? Umas, abertamente o fazem. Outras, dão a impressão. A impressão?
Como seria/será uma multidão como aquela do mês de outubro dizendo, nas ruas de Belém: nós temos fé em Deus e temos também fé em que outra cidade e outro Estado são possíveis, com mais igualdade, sem pessoas de primeira e de segunda categoria? Em seguida a multidão reza: "Eu vim para que todos tenham vida plenamente". No Círio se fala essas coisas ... mas, e a consequência prática na vida de cada um e da sociedade? Amém!
Belém do Pará, Pará de Belém e os grandes que em ti mandam: levantem-se e façam justiça ou, então, mudem de nome. Pois, em algum momento, os famintos paraenses de Belém, de Santarém, de Marabá, de Benevides, de Marituba, de Ananindeua, de Jacundá, de todos os quadrantes encontrarão as razões e buscarão os meios de fazer valerem os sentidos das palavras Pará e Belém.

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