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quinta-feira, 29 de março de 2012

Homenagem: O humor intrigante de Millôr

Humorista e escritor morreu no dia 28 de março, aos 88 anos
Millôr, na verdade, deveria ter sido Milton. O nome desejado pela mãe e o pai foi escrito errado na certidão de nascimento: onde deveria estar Milton, lia-se “Millôr” (o corte da letra “t” confundia-se com um acento circunflexo, e o “n” com um “r”). Décadas mais tarde, lançou um livro inteiro apenas com variações visuais em torno de sua assinatura. O livro, claro, era uma forma de questionar sua própria trajetória pela condição do próprio nome. Afinal, o que há num nome? Millôr teria sido um artista completamente diferente não fosse o erro do escrivão?
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Talvez um convencional “Milton Fernandes” não tivesse o senso de humor perplexo de um nome estranho como Millôr, aquele crítico mordaz, ao mesmo tempo, incisivo e intrigante, que a gente nunca sabia se atirava para a direita ou para esquerda. Mesmo em épocas de simplismos ideológicos, nas quais cada um brigava em seu campo, o independente Millôr nunca se deixou levar por proselitismos – enquanto um Milton talvez não tivesse resistido à tentação.
Na verdade, em vez de tomar partidos, Millôr sabia das dificuldades em exercer a liberdade individual num mundo onde todos vivem como cães adestrados, que se matam sem razão por slogans ilusórios. “Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim”, dizia um de seus aforismos mais famosos. No fundo, somos todos impotentes diante de nossas prisões. A única forma de libertação se dá pelo absurdo do humor, a capacidade do ser humano em brincar com sua própria condição.
“Sempre vivi, continuo vivendo, e espero viver sempre sob ditadura com suas várias grifes. É muito divertido”, disse ele certa vez.
Millôr, no entanto, não era o que se podia chamar de niilista, amargurado ou descrente (“Acreditar que não acreditamos em nada é crer na crença do descrer”, dizia outro famoso aforismo). Sua crença era no humor, mas não qualquer humor – um humor movediço, cheio de curvas, escorregadio como um peixe que sempre escapa de nossas mãos. Um humor “Millôr”. Bendito escrivão! (Opinião e Notícia)

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Poema enviado pelo jornalista Léo Gomes:

Poeminha Última Vontade

Enterrem meu corpo em qualquer lugar.
Que não seja, porém, um cemitério.
De preferência, mata;
Na Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na tumba, em letras fundas,
Que o tempo não destrua,
Meu nome gravado claramente.
De modo que, um dia,
Um casal desgarrado
Em busca de sossego
Ou de saciedade solitária,
Me descubra entre folhas,
Detritos vegetais,
Cheiros de bichos mortos
(Como eu).
E, como uma longa árvore desgalhada
Levantou um pouco a laje do meu túmulo
Com a raiz poderosa,
Haja a vaga impressão
De que não estou na morada.

Não sairei, prometo.
Estarei fenecendo normalmente
Em meu canteiro final.
E o casal repetirá meu nome,
Sem saber quem eu fui,
E se irá embora,
Preso à angústia infinita
Do ser e do não ser.
Sol e chuva ocasionais,
Estes sim, imortais.
Até que um dia, de mim caia a semente
De onde há de brotar a flor
Que eu peço que se chame
Papáverum Millôr

Millôr Fernandes – 1.6.1992

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