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segunda-feira, 12 de maio de 2014

Parabéns, Vale!


Há 18 anos a mineradora fornece, gratuita e generosamente, a matéria-prima do projeto A Vale, a Vaca e a Pena, provocação do artista plástico Kleber Galvêas
11/05/2014 11:35 - Atualizado em 12/05/2014 15:15

Texto: Henrique Alves
Fotos: Gustavo Louzada/Porã


Antes de fruir obras de arte, o visitante do Ateliê Kleber Galvêas recebe uma breve aula de educação ambiental. Sob o pedaço de mata denso e fresco que guarnece a entrada do ateliê, vê-se resguardado um resquício de espécies endêmicas, ou mesmo nativas, de uma Barra do Jucu de outrora, que o tempo e o progresso transmudaram em memória. O anfitrião dá atenção especial às bromélias. “A Barra do Jucu era uma região rica em variedade de bromélias”, diz Kleber Galvêas.
 
Mas fala também da samuma. “É uma planta da qual se aproveita tudo, corda para arco indígena, óleo de cozinha, isolante térmico, ração. E é uma árvore muito bonita”. Ali também medram desimpedidos a tagibubuia, poca, almescar, raiz forte. De repente, Kleber se surpreende, aponta para o chão, um ramo perdido entre as folhagem: é um oiti que nasce
 
Mais adiante ele aponta uma ramagem cor de rosa e pergunta: “Com que isso parece?”. O repórter olha detidamente, pensa e vem o estalo: “Um coração!”. “Isso mesmo. E sabe qual é o nome? Amor-agarradinho. A Barra do Jucu era cheio disso. No verão as casas ficavam todas cobertas dessas flores”. A delicadeza do amor-agarradinho também medra desimpedida; as pequeninas flores-coração se espraiam lindamente sobre a cobertura vegetal, dando róseas pinceladas no verde dominante.
 
Essa microfloresta desenha uma verdejante abóboda sobre o estreito caminho que leva o visitante da rua à porta azul-escuro de madeira do ateliê. Se no início do percurso o visitante já é agraciado com uma aula de educação ambiental, ao final ele recebe outra, bem menos lírica, muito mais dramática, embora um tanto bem humorada. 
 
Deixando o ateliê, em cujas paredes estão expostas as telas de Kleber e alguns pequenos desenhos de Homero Massena, entramos propriamente na casa dos Galvêas: no terreno amplo, uma significativa variedade de árvores frutíferas e plantas ornamentais envolvem a grande casa de dois pavimentos com quadros para todos os lados, no interior ou na varanda.
 
E é na varanda posterior que o visitante recebe a segunda aula de educação ambiental: ali estão expostos alguns quadros do projeto A Vale, a Vaca e a Pena, que na última terça-feira (6) chegou à maioridade artística, completando 18 edições. Desde 1997 Kleber Galvêas denuncia de forma criativa e sarcástica os males que o pó de minério lançado pela Vale provoca aos pulmões capixabas. 
 
Obviamente, não há o que festejar. Já a Vale, esta, sim, tem uma áurea e reluzente taça para erguer: sem ser incomodada - nem pelo Executivo, nem pelo Judicário, nem pelo Legislativo - são anos e anos inundando de pó preto as vias respiratórias de adultos e crianças. Lembra aquele samba de Jorge Aragão, sucesso com Beth Carvalho: “Vou festejar, o teu sofrer, o teu penar”. 
 

A Vale, a Vaca e a Pena é um projeto de uma simplicidade comovente: basta uma tela branca e a ponta do dedo indicador de Kleber. O resto - e o resto aqui é bastante coisa - a Vale fornece gratuita e generosamente. Por 50 dias, sobre a extensa mesa de tampo de mármore, uma tela de Eucatex em branco fica exposta na varanda traseira da casa. Tudo começa sempre às 12h do dia 17 de março - desde 1997.
 
Estivemos lá no dia 17 de março deste ano. Não há qualquer solenidade: Kleber pega a tela, então de uma alvura virginal, passa uma fita adesiva nos quatro cantos e finalmente a deposita sobre a mesa. Só isso. Agora é com a Vale. Pelos próximos 50 dias, o êxito ou fracasso do projeto depende da mineradora.
 
O problema é que desde sempre a Vale contribui para o sucesso da exposição. A tela inaugural descreve um labirinto e faz uma pergunta: “Encontramos a saída?”. Explica-se. 
 
A privatização da Companhia Vale do Rio Doce em 1997, empresa criada em 1942 no governo Getúlio Vargas, nutriu imensa expectativa em Kleber Galvês: uma vez que a empresa passaria às mãos privadas, agora sim, assim honestamente achou, a poluição acabaria. Se o poder público não demonstrou capacidade ou competência para fiscalizar as próprias atividades, em mãos alheias seria diferente, a fiscalização seria levada a sério. 
 
Kleber então bolou uma provocação artística que se realizaria apenas naquele primeiro ano, para coincidir com a data do leilão de privatização. Daí o labirinto, daí a pergunta: será que privatizando, será que o governo, deixando de ser o dono do negócio, iria tomar vergonha na cara e fiscalizar a poluição? Seria essa a saída? 
 
Mas como nossos pulmões bem sabem, o tempo mostrou que ainda vagamos nesse labirinto. 
 
Kleber Galvêas nasceu em Divisa, hoje Dores do Rio Preto, em 1947. Entrou para o mundo das artes visuais pelas mãos da mãe, Esther Galvêas, menos para elevar o espírito do menino do que para quietar-lhe o facho: quem conhece Kleber, sabe que ele é inquieto, fala bastante, gosta de contar histórias. 
 
Na infância, dona Esther, que aprendera a pintar com a irmã Tereza Monteiro de Novaes, na Escola do Carmo, em Vitória, dava aos filhos os lápis, pincel e tinta que sobravam da pintura das paredes da casa e ganhava em troca um pouco de paz. Mais tarde, levou uma obra de Kleber a Homero Massena. O grande pintor gostou: “Traga esse menino aqui que ele leva jeito”. Era 1962. Daí para frente, a amizade virou uma relação de mestre e discípulo, a que só a morte de Massena, em 1974, deu um termo. 
 
Como profissional, o artista plástico Kleber Galvêas nasce em 1966, no Primeiro Salão de Artes Plásticas do Espírito Santo, realizado no edifício Ouro Verde, no Centro de Vitória. Foi um evento colossal, de que participaram artistas do país inteiro. Pouco depois, embarca em um navio cargueiro e vai estudar medicina em Portugal. Mas não passou do primeiro ano: muda de ideia e vai estudar gravura em metal na Sociedade Nacional dos Gravadores Portugueses.
 

O artista acompanha a danação atmosférica capixaba desde os anos 70, quando, de volta ao Brasil, tentando abandonar a pintura, inicia o curso de Economia na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Em 72, o filósofo e cientista social Michel Bergman ministra um curso no Teatro Carlos Gomes aberto a todos os estudantes da instituição. O tema: as perspectivas do Espírito Santo com a instalação dos grandes projetos. 
 
“Ele previu tudo”, lembra Kleber. E tudo significa: poluição. A Vale chegara ao Espírito Santo em 1966 com a inauguração do Porto de Tubarão. “Desde aquele primeiro ano já era considerado um absurdo uma fonte de poluição situada a sotavento no lugar do estado onde havia mais habitantes”, diz. Ele destaca ainda os alertas do naturalista Augusto Ruschi, crítico incansável das atividades da Vale.
 
Em Kleber Galvêas, arte e consciência ambiental sempre andaram juntas. Pintor de forte, embora não exclusiva, tendência impressionista, uma vez que herdeiro de Massena, destacado representante da escola de Claude Monet, tem na pintura de paisagens uma grande característica. A pintura ao ar livre associa-se às técnicas impressionistas: contato com a natureza, registrando as variações de luz e gradações de cor de uma cena efêmera.
 
“Na década de 70, quando vim morar aqui, quem pintasse paisagem era considerado uma múmia: que coisa mais antiga, ultrapassada, velha. Ninguém pintava paisagem nos anos 70. E meu interesse em retomar as paisagens foi exatamente para despertar uma consciência ambiental, de início aos proprietários aqui do entorno”, recorda.
 
Kleber mora na Barra do Jucu, no mesmo local, há exatos 40 anos. No dia do casamento, comprou a última casa de pescador do lugarejo, uma edificação simples, de três cômodos, sem conzinha nem banheiro, que os anos e os filhos o obrigaram a ampliar, conferindo-lhe outros três cômodos e um corredor central. Ali hoje funciona o ateliê; a nova casa da família foi erguida nos fundos do terreno.
 
Sua chegada à Barra coincide com os primeiros movimentos de uma devastação. “Era uma Floresta Amazônica em miniatura”, diz, sobre a Barra. Ele lembra touceiras colossais de orquídeas ceifadas a foice e lançadas ao fogo; quaresmeiras; piscinas de água natural na Pedra da Concha onde colocava engradados de guaraná para gelar; samambaias-gigantes cortadas para virar xaxim; árvores na Ilha da Jussara com que se produziam canoas; macacos, veados, jupatis, mão-peladas, tudo quanto era bicho. 
 
“O lugar é lindo, tem a foz de um rio, o mar, o recorte de montanhas, o Mochuara, a Torre da TV em Vitória, a Pedra dos Dois Olhos, o Mestre Álvaro. É um lugar emoldurado”, diz.
 
O primogênito projeto artístico-ambiental a que se refere acima é a pintura ao ar livre da paisagem barrense, cujas telas foram expostas no Centro de Vila Velha. A ideia era sensibilizar os devastadores, ou seja, os proprietários de terrenos, que simplesmente ignoravam aquele patrimônio natural. O quadro não mudou 40 anos depois: nos últimos anos, vimos que se depender do poder imobiliário canela-verde, o Parque de Jacarenema vira um resort de luxo.
 
Como na terra, a situação também se agravou no ar. Mesmo distante 30 quilômetros da ponta de Tubarão, a Barra do Jucu também é flagelada pelo pó preto da Vale.  
Mais especificamente, dois detalhes metodológicos de A Vale, a Vaca e a Pena desabonam ainda mais os contos de fada publicitários da Vale e de seus prepostos em audiências públicas. 
 
Um, a tela em branco de cada edição não fica exposta na direção da fonte, ou seja, a nordeste. Fica a sudoeste. Dois, ela não fica a céu aberto. Fica ao ar livre, em uma varanda coberta e resguardada por uma floresta das árvores frutíferas dos fundos da casa: acerola, manga, jabuticaba, jambo, abiu, carambola, araçaúna. Sem contar as não-frutíferas.
 
Ainda assim, ao final de 50 dias, a tela em branco e o tampo de mármore da mesa de quase três metros de comprimento estão uma imundície, como verificamos na manhã da última terça-feira (6). 
 
Quando o relógio bateu 12h, Kleber se dirigiu à mesa para criar a tela da maioridade do projeto. Também, aqui, não há solenidades. O desenho já está na cabeça; fizera um estudo dois dias antes. Mas, conta, ao término de uma edição, já começa a mastigar a cara da seguinte.
 
A tela está imunda, empoeirada. Com a cabeça do indicador direito, ele inicia o trabalho fazendo uma espécie de borda na área externa demarcada pela fita adesiva. É uma fricção sem fim, dá nervoso vê-lo arrastar o dedo contra aquela poeira espicaçante. “Aqui o grão é bem menor, não fere muito a mão. Mas lá em Vila Velha, era maior, às vezes sangrava. Aí tinha que ir mudando de dedo”. As cinco primeiras edições do projeto aconteceram em seu antigo ateliê na Prainha. 
 
Silêncio. Ouve-se apenas o farfalhar das árvores e a fricção sobre a tela. Concentrado, comenta: “Rapaz, parece que esse ano tá mais preto que ano passado”. Ele teoriza que o período deste ano foi menos chuvoso que o anterior. Novo comentário: “Tá vendo, acho que diminuiu a quantidade de carvão na poeira, pelo que chega aqui. Ela não está ficando mais, assim, tão escura”. Realmente, as telas de 10 anos atrás são de um preto mais carregado. 
 
A primeira mensagem é uma frase, ressaltando uma característica do projeto, que costuma reunir à mesma tela linguagem verbal e figurativa. “Não mais do mesmo”, risca na faixa superior da tela. Ele explica: a frase refuta tanto a poluição quantos a classe política sempre subserviente aos impulsos da mineradora.
 

A seguir, esboça a ponta de Tubarão. Uma a uma, nascem chaminés. No terço inferior, o mar e um barquinho. A tela está quase pronta. Falta o remate: pequenos corações envolvem o topo das chaminés, como se a Vale estivesse expelindo amor para os capixabas. “A gente quer bem a eles. E eles que queiram bem a gente”, ri. Como o livro é aberto, a mensagem aí pode ser irônica: os corações talvez representem o discurso de filha da Mãe Natureza que a Vale propaga em suas peças publicitárias.
 
Pronto. A Vale, a Vaca e a Pena consumou sua maioridade e brindou o artista com uma pequena bolha no dedo. Agora é lançar um spray fixador e um verniz acrílico sobre o desenho.
 
Kleber diz que seu vizinho de fundos, o médico pneumologista Geraldo Pignaton, compara A Vale, a Vaca e a Pena com a metáfora do ovo de Colombo pela simplicidade do projeto. “É uma porcaria, né, um pedaço de Eucatex e a própria empresa me dando a matéria-prima para fazer a crítica a ela. Nem com isso eu gasto. Não gasto nem tinta”, diz, rindo.
 
A arte e o artista são bem humorados, mas o assunto é seríssimo. A poluição continua a mesma 18 edições depois. A causa disso, no entanto, não é mistério algum - o que torna o problema ainda mais sério.
 
“Eles compram todo mundo. Você pode ler a lista das contribuições dessas empresas para as campanhas eleitorais. E hoje a estrutura política do Brasil não dá chance a quem não tem dinheiro. Precisamos urgentemente de uma reforma eleitoral. E acho que o ponto crucial dessa reforma é o financiamento das campanhas”, diz, evocando o fato sabido e conhecido de que a Vale é uma das mais dadivosas doadoras da campanha do Espírito Santo.
 
Kleber nunca sofreu pressão por causa do projeto. “Mas indiferença, sim”, ri. “A gente toma cuidado: é uma provocação artística, não é uma experiência científica. Se tivesse sofrido pressão, eu reagiria”, afirma, como que dando a entender que a indiferença é pior do que a pressão. 
 


Afora expor de maneira bem humorada essa tragédia capixaba do pó preto, o grande objetivo de A Vale, a Vaca e a Pena passa ao largo de oferecer ao espectador o prazer da fruição artística. Kleber sempre reforça, repisa e repete um apelo: que as pessoas façam uma certa experiência nas próprias casas e assim verifiquem o drama da poluição por si mesmas.
 
Uma escova, um imã e uma folha de papel é tudo de que se precisa. Kleber se agacha e varre com a escova a superfície da mureta da varanda até juntar um montículo de poeira. A seguir a despeja sobre o papel. Agora vem a magia: ele posiciona o imã sob o montinho e faz movimentos circulares. De repente partículas minúsculas de cor preta, que lembram alfinetes de tamanho milimétrico, dançam ao sabor do imã. 
 
Tal é o ar de Vitória. É isso que eu e você respiramos. E é isso a que a Vale chama sustentabilidade. 

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