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quarta-feira, 28 de março de 2007

Miúdas lembranças

Quiosque em forma de pequeno e delicado castelo de fadas quase em frente ao mercadão, que depois um prefeitinho qualquer – sempre eles – mandou derrubar. Açougueiros retalhando a vida alheia desde as primeiras horas de cada manhã. Balança de ferro fundido com cabeça de touro. Carne com osso, cortada a machadinha sobre cepos de madeira. Lingüiça de porco enrolada em varal acima do talho. Bolo de arroz com beirola queimada. Cuscuz encharcado de azeite babaçu, bolo cacete, orêa, mangulão com erva-doce. Café preto e forte com leite cozido de gado e açúcar mascavo. Leite cru, tirado com vasilha de alumínio de dentro de bujão de latão com tampa de rosca. Cabeça raspada de porco na ponta de gancho. Galinha caipira com os pés amarrados, e dependurada de cabeça para baixo. Cambo de pacu manteiga, piau camisa-de-meia e mandi cabeça-de-ferro. Tabuleiro de madeira com toalha branca protegendo os copos de arroz doce e mungunzá com cravo-da-índia. Cravinho, casca de laranja, caroço de abacate, vereda, murici, infusos em cachaça Vale. Vermute Gancia. São João da Barra, Coquinho, Ferro Quina e SOS. Copinhos de fundo grosso, com marcas para doses de 200, 500 e de 1000 cruzeiros. Moedas de centavos, pregadas no balcão encardido. Papel de embrulho, balança de mesa, pesos de metal amarelo em forma de garrafinhas. Judas de melão–são-caetano amanhecido no sábado da aleluia recostado na calçada e seu testamento pregado logo acima da cabeça na porta de madeira do mercadão. Pirão de farinha seca e de puba; capitão de feijão com arroz amassado à mão dentro do prato esmaltado com flores azuis e vermelhas. Fava cozida com carne de porco frita, banana branquinha e farinha de puba. Sembereba de leite de castanha, tomada no copo de alça. Mangaba de manga de vez cozida. Pote de barro em bancada de madeira com copos e concha de alumínio, para beber da água juntada do Tacaiúna em latas trazidas em cambão de sarã. Bacia de alumínio, cheia de roupa lavada, equilibrada sobre rodilha na cabeça da lavadeira. Filhas de lavadeiras com tábuas na cabeça, carregadinhas de roupas passadas. Bola de meia e touca de time de futebol. Ponte com casarão de madeira entre o fundo da igreja e o pé de tuti no quintal da padaria. Enormes flores amarelas de mata-pasto, carregadas de formiga de fogo. Peteca colombina e pião rodando na poeira da rua. Jogo de infinca. Papagaio sem rabo, cerol enrolado em bola de papel. Corró nojento sapecado lá longe nas pescarias de lico. Peta, bolo doce da Porfira, touceira de maria-tua-mãe-morreu. Tropa de jumento carregado de areia. Pau de lata d’água. Nego Mariano juntador de binga, Diabo Louro, Nega Tereza, Odilar Barreto, Xêta e Nego da Donana. Ceará bosta-de-boi, Cururu tem-tem, Zabelona. Por fim, Nego Zacarias, quase dois metros de altura, o primeiro veado a vestir saia longa de colorida seda chinesa e a enfrentar o mundo raivoso armado de sombrinha e bolsa a tiracolo. Tábua de pirulito, quebra-queixo cortado com espátula, leite de onça no bar do Codó, picolé de araçá, carrinho de raspa-raspa com litros brancos cheios de refresco de cupu, murici, maracujá. Ofensas: qualira, xibungo, caraxué, jacamin,. E uma definitiva e única palavra de amor: licute.

2 comentários:

Anônimo disse...

Faltou o quaradouro! Ou será que em Marabá o pessoal não quarava a roupa? Na minha casa tinha quaradouro no quintal; tinha cerca de paus de acapu. Aquilo dava um estrepe em dedo de moleque! Tinha ainda moleque varando quintais de igapó aterrados com caroço de açaí, atrás de papagaio e cangula. Era grande o risco de ficar enterrado até o pescoço, no meio da maçaroca de capim, maria mole, lama e dejetos domésticos (estes, até poucos). Ou então rasgar o pé num pau ou caco de vidro atirado nos terrenos baldios.
Tinha história de jacaré, de sucuri, mas tinha também o tamuatá encalhado no meio da rua, depois das chuvas torrenciais que recompunham momentaneamente a paisagem original do igapó da Batista Campos, da Cremação... Tinha caranguejo fugido da feira mais acima, no Cemitério da Soledade, tinha maçarico mariscando na beira do canal, tinha calango de meio metro, verde e azul, comendo larvas na terra fresca. Tinha coruja rasgamortalha pra matar a gente de medo à noite, tinha o vizinho taxista "mata - Sete", coitado, atropelou um bocado de uma vez só. Era A Doutor Moraes setentista.

Ademir Braz disse...

Artur, mano velho,o quaradouro é justo o nome do blog eheheh, logo, não falta nada. Como nasci e me criei na beira do rio Itacayúnas (grafia da época), o quaradouro da minha mãe era no descampado onde floresciam as macelas, que ela amassava nas mãos com o sabão de potassa e a roupa dos burgueses ficava limpa, cheirando a fulô. Macela também era bom pra encher judas no sábado da aleluia, que saudade!
Teu estrepe, aqui, até hoje, é chamado de flêpa. Parece que dói muito mais!
quando cheguei menino em Belém, só com a cara e a coragem pra estudar, morei na baixada da 1o de Março, depois do Pronto-socorro, na Lomas Valentina, 700, casa da família do seu João Sinésio, gente amada e nunca esquecida, depois mudei-me para a Tamoios com Estrada Nova, território do Zequinha, que, aliás, nunca assaltou ninguém lá no pedaço. Andávamos sobre estivas na Pariquis, Mundurucus e nas demais tribos atrás de festa de aniversário e cordões de pássaro.
Ah, mano velho, você me faz muito feliz em ler meus escritoe e me dar um toque sobre tudo isso