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segunda-feira, 16 de maio de 2016

Lugar dos invisíveis



Capítulo 3

Muitos anos depois, desde que se incorporou definitivamente como seiva ou casca à essência vegetal trintenária que o abrigou tantos anos, Januário dos Espíritos seria lembrado apenas durante os verões, quando a jaqueira cobria-se de rosas douradas e gerânios. Ele não morreu: apenas voltara aos elementos, ao chumbo, ácidos, átomos, sais que um tempo fulgiram nas estrelas. Antes disso, quando profetizara o renascer das águas, a vinda do dilúvio, nascia agosto em Abaram e viria para sempre, dezenas de anos na forma de uma chuva fina e sem fim de cinzas a cair silenciosa sobre as casas, tangida desde longe pelo mesmo sopro quente das queimadas que avançavam sobre os castanhais. Já então cães irritados ladravam a noite inteira, velhos lacrimejavam, tossiam e choravam crianças inquietas. Deserdada dos ventos, a noite condensava de tal sorte o manto de fumaça sobre as casas e a mata que, pela manhã, criaturas mal dormidas tateavam entre as cômodas, câmaras ardidas, e erravam tontos de fumaça os animais pela rua. Infinitamente cinza era o céu de agosto. As nuvens – antes gigantescas e formidáveis - quase eternas de dezembro a maio, minguavam desse mês em diante até sumir nos largos horizontes de chumbo e cinza de agosto. Emparedado em fumaça, o sol desabava numa claridade suja sobre o verde escasso e o ar espesso fervia na entranha dos pássaros. Não havia como fugir desse inferno, das cidades, povoados, vilas enclausuradas em círculos de chama e cinzas. Jamais era dia por inteiro em Abaram. Andava em tudo um mormaço doentio a esmaltar os olhos, a empedrar o tempo, elidir as horas, cada instante a esgarçar-se em vácuo antes de consumir-se na penumbra. Deixava então o dia de ser dia - como se entende a massa luminosa das horas que transita acima dos homens e dos campos, de uma à outra parte do mundo. Suave e breve no começo, a seguir sufocante, corrosiva de vez, até que o sol falecesse no longe dos oceanos. Ressecavam-se, antes do coito das abelhas, as flores do cajueiro. As mangas, miúdas, amareleciam raquíticas; pecavam os frutos no limoeiro. Meses inteiros não chovia, e agosto avançava por setembro, outubro, novembro.
Foi em agosto também, embora muito antes do dilúvio, que Fortunato Costa teve o sonho profético. Ele morava há anos no centro empoeirado de Abaram e certa madrugada dormitava, entre o sono frouxo e os torpores ainda remotos do despertar, quando a luz azul filtrou-se por baixo da porta. Dentro da luz, no quarto escuro e tosco, um ser incandescente. “Fortunato - a voz de catedral fazia tremer as paredes -, Fortunato, assim que amanhecer faz o que meu Senhor te ordena”. Folha seca, a alma de Fortunato vagou longo tempo ao sopro do vendaval de luz e ressonâncias inumanas a ditar-lhe condutas, palavras, regras miúdas. Quando sua mulher levantou-se, de manhã, devagar e suspirando como há cinqüenta anos, ela percebeu que, acordado, as mãos cruzadas sobre o peito descarnado, Fortunato olhava sem ver as ripas de morototó enegrecidas do telhado. “Matutando cedo, meu velho?”, “Não, minha velha, foi sono curto”, ele disse. Ela arrumou em rodilha os cabelos grisalhos e foi buscar lenha no depósito fora da casa. No quintal, os gatos amontoavam-se sobre os sacos de estrume para os canteiros. Nos céus apontavam os fulgores do aço de agosto.
Mais tarde, quando a cidade começava a derreter-se em suores e zanzavam inquietas as crias sob o cajueiro carregado de flores secas e frutos pecos, nem o cheiro do café torrado e moído em casa fez mover-se Fortunato, ele que toda a vida levantara-se antes do abrolhar da aurora. Ele ficou ali, na cama fincada no chão, as mãos juntas na ossatura do peito, olhos ainda gatiados pela visão do arcanjo. E pela primeira vez na vida nada dissera à companheira. Desse dia em diante, passou a meter-se em vestes apenas diversas na cor, mas rigorosamente iguais no talho: calça, camisa e gravata confeccionadas sob medida no mesmo tecido. E mal servia-se do café matinal com mangulão e leite fresco, entregue à porta em bujões zincados, punha Fortunato o chapéu e atirava-se às ruas. “Lá vem o gravata do mesmo pano”, debicava o populacho ao vê-lo apontar em qualquer esquina montado num burrico, as pernas compridas a esbarrar no chão. Circunspecto, Fortunato nem os ouvia: a um missionário não cabe dispersar-se nas miudezas profanas do mundo. Todo santo dia trotava pelas ruas e vielas da cidade e diziam haver certo método na sua loucura: se ia pela Rua dos Mineiros, ao alcançar o Varjão descia pela Rua do Poço, tomava a Rua Grande, dobrava em direção ao Alto do Bode e chegava em casa pelo Barro Branco pontualmente à hora do almoço. “Por onde anda, meu velho?”, indagava aflita a companheira. “Procuro, minha velha, não se vexe”. À tarde, após a sesta, cruzava por baixo a ponte que unia a Rua Nova aos fundos da igreja do padroeiro, circundava o Cabelo Seco, passava em frente ao cemitério, subia a rua Itacayúnas, descia a Baixa da Égua, varava o Pau d’Urubu, entrava e saía do Beco do Facão de Fora, arrastava-se por Jurema, Jureminha, empertigado e solene entre as prostitutas e os jogadores de bilhar. Certa feita, o poeta Augusto Bastos parou-o no meio da rua: “Eis nosso D. Quixote – saudou-o gravemente - mas falta-lhe uma lança. Meu reino por uma lança!” O cavaleiro ali, impassível diante dos boêmios diuturnamente em farra. Bastos tinha os cabelos grisalhos e longos, a barba cerrada e suja, olhos alucinados de aguardente e poesia. Bastos, goiano de origem e de início do século, veio ainda criança para Abaram. Morou uns tempos em Belém, onde o convívio com intelectuais o revelara o poeta candente e escorreito. Em 1932, empolgado com o Movimento Constitucionalista, foi para São Paulo, onde engajou-se como soldado, mas logo abandonou a farda. Desiludido, retornou a Abaram, à vida espartana e à boemia. Baixinho, empinava-se agora na ponta dos pés e sua cabeça emparelhava com a do burrico guarnecida por antolhos. “Deixai crescer o cavanhaque, distinção dos nobres”, continuava Bastos, a rédea de couro numa das mãos. Um dos bêbados voltou com uma lança – na verdade, uma vara pintada à mão e coberta de fitas coloridas -, confiscada entre as fantasias do boi-bumbá de Pamica. Bastos enfiou-a na mão direita de Fortunato. “Ide agora, cavalheiro andante, e dai combate aos dragões que infernizam esta corrutela sem nenhum futuro”, proclamou solene, enquanto seus parceiros cutucavam o animal.
A noite bulia nos olhos de Fortunato feito carícia a ronronar o tempo, os contornos do céu. Na esquina, crianças brincavam e sua voz tangia os anjos caídos do crepúsculo:
Nesta rua, nesta rua tem um bosque
Que se chama, que se chama solidão;
Dentro dele, dentro dele mora um anjo,
Que roubou, que roubou meu coração.

Se roubei, se roubei teu coração,
Tu roubaste, tu roubaste o  meu também;
Se roubei, se roubei teu coração,
É porque, é porque te quero bem.

Se esta rua, se esta rua fosse minha
Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de diamante
Para o meu, para o meu amor passar.

Durante bom curso. o animal rabiscou seu  caminho, há tempos para lugar nenhum. Sobre ele, o ancião caminhava distraído sobre pedrinhas da infância perdida nem Deus sabe onde, no cerrado ou na caatinga, entre seriemas e gorgulhos polidos nas fontes secas. Então passou os dedos nodosos nos cabelos brancos, úmidos e empoeirados da soleira, suspirou profundo e nem percebeu que já as trevas ganhavam o mundo. 


3o. Capítulo do meu romance "Lugar dos Invisíveis"