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quinta-feira, 5 de junho de 2008

Perigo à espreita

Definições

Embora o ônibus estivesse meio vazio naquela primeira viagem rumo ao centro, o preto velho sentou-se na última fila de cadeiras do Nova Marambaia e de lá começou a conversar com o motorista, seu amigo, que dirigia olhando-o pelo espelho acima da cabeça. Aquilo era uma cena que se dava quase todas as manhãs. O sujeito falava sem pressa, mas o vozeirão tonitroante e pacífico espalhava-se da primeira à última poltrona do coletivo. Naquele dia, contudo, ele parecia amargurado. Relatou com detalhes as traquinagens de outro conhecido seu e do bairro, e ao fim não eximiu-se de julgamentos: - O Zebedeu não presta, não tem aquilo, aquele como-chama de homem de bem... - Não tem escrúpulos..., ajudou-o o motorista lá adiante. É isso! O Zebedeu não tem crepúsculo, dá na mãe, destrata os amigos, não tem lei...

Vivências

Brincávamos à sombra das palmeiras ou namorávamos nos bancos sob a luz de luminárias que pareciam os lampiões de outrora, em frente à maçonaria da praça histórica. Faz tantos anos. Dia desses parei em frente àquele casarão e fiquei explodindo em lembranças das noites na Praça Duque de Caxias, dos amigos que o tempo levou, dos amores em regra doloridos, das palmeiras reais que desapareceram, rostos, mãos, afagos, alguém dizendo que lá dentro existia um bode preto e monstruoso, e o cheiro do rio subindo pela minha pele como um incenso. Eu nunca vi o bode mitológico! Mas lá dentro do casarão quase centenário tem uma acácia, que hoje me é conhecida, e que passa todo o tempo esparramada em flores.

Colonização

Eles vieram tangidos pelo governo, na década de setenta. Na Amazônia há terra abundante e generosa, disseram-lhes, e sementes mágicas de arroz e milho, e dinheiro para ajudar na acomodação, e compra garantida do produzir e técnico de plantão. Meeiros explorados, arrendatários falidos e cheios de filhos, eles acreditaram. E vieram com tudo: os aviões e caminhões abarrotados de tralhas, selas, arreios e – mais que tudo – a saudade dos prados ondulantes. Duas ou três décadas idas, eles não estão mais aqui. Os que não retornaram ao trópico, a maleita sepultou-os sob a linha do Equador.

Amarga lembrança

Foram os urubus em vôo espiral cada vez mais estreito sobre o terreno quase descampado que anunciaram: o corpo da professorinha estava entre arbustos e seus olhos escancarados fitavam a eternidade inútil. Era o dia 4 d fevereiro de 2001. Na tarde morta ecoavam o chapinhar de botas sobre o capinzal encharcado do pântano, os arquejos, a fragorosa consciência de que a busca se acabara da forma que todos previam e se negavam a acreditar.

Miragem

Voltamos às pressas porque minha filha começou a passar mal, acho que pelo vatapá que comeu. Esqueci, de besta, que vatapá à noite está no mínimo requentado - tragédia para intestinos adultos, que dirá para os de criança. Felizmente tenho remédios à mão (coisa mínima, caseira mas ótima para esses desarranjos) e ela amanheceu bem. Quem subitamente passou mal fui eu, de repente só, consciente por inteiro desta minha solidão, agravada pelo fato de não lhe ter sequer pedido a chance de revê-la. E tê-la visto desaparecer entre bandeiras vermelhas, naquela multidão, me fez imaginar que nunca mais a veria, ela tinha vindo de repente e de repente fora embora, tsunami, flying saucer, rastro de perfume, cabelos lavados, frescor na pele e no hálito, os olhos mais cintilantes que já vi nesses tempos de furores e desencantos, perdidos sob estrelas vermelhas e fogos de artifício.

Revisitações

Detesto doenças, tenho um profundo desprezo pela morte e instintivamente fecho portas e janelas interiores quando se trata desses dois assuntos. Deve ser porque na minha infância tive de tudo para morrer cedo: pneumonia 8 vezes, derramamento de pleura com infecção generalizada nos pulmões, essas coisas que acabaram me deixando duro por dentro e por fora em relação a doenças. Quando vou ao cemitério, vou normalmente sozinho. É uma visita a meus pais, sobrinho, amigos, à sepultura de antigos pioneiros anônimos que tento identificar no meio de tanto abandono. A paz do cemitério, do meu cemitério, paz ensolarada que me dá sensação de liberdade e me reencontra com as coisas mais profundas que carrego no coração: o amigo de infância, o embarcadiço que descia o Capitariquara levando os grandes motores, o sujeito com quem, algum dia, esbarrei na ponta de um botequim. Mas deixemos os mortos em paz... Por mim, estou olhando esta cidade e esta terra com um tédio cínico, desses que nos dá quando as coisas se tornam definitivamente apartadas da gente, e só nos resta, além de um sentimento de velhice, alguma consciência de inelutável perda de tempo. "Por que diabos gastei boa parte da minha vida com esta coisa sem sentido?" Alguma coisa assim...