(De como Maurino Magalhães geriu, com seus dons divinatórios, a cidade de triste história chamada Marabá, a Terra Mesopotâmica do Sol)
"O cidadão chegou exatamente às oito e meia da manhã de sexta-feira, 17 de junho, no prédio que abriga o Gabinete do Prefeito, e a base do show já estava armada: a mesa entoalhada posta com biscoitos, bolos, salgadinhos e sucos diversos. "O prefeito só vai atender depois do culto", informou-lhe em voz neutra um serviçal, antes de largá-lo sem mais delongas e ir juntar-se ao grupo imenso de funcionários que aguardava do lado de fora.
Às dez horas, quando o cidadão voltou de outros que-fazeres, os irmãos falavam e oravam na sala cheia. E lá se foi outra vez o paciente cidadão a uma loja verificar preços, tomar café, olhar tecidos, andar entre balcões, rodar, rodar, rodar até cansar-se, insatisfeito por ter perdido a manhã sem conseguir resolver o problema que o levara à prefeitura. Ao retornar ao gabinete, ele pôde ver um ex-alcoólatra a dar testemunho de como Jesus o ajudou a largar a desgraça da cachaça e fez dele um cruzado a resgatar tudo quanto é bêbado do mundo. "Esse aí não entra na casa do poeta", riu-se internamente o cidadão. Dentro da sala também estava uma mulher toda enfaixada como se tivesse acabado de fugir de uma sala de cirurgia, talvez para dar também os testemunhos da força de sua fé.
Mas, achando que a desgraça da cachaça é menos prejudicial à sociedade do que o mau político, de novo lá se foi o cidadão abstêmio a vaguear na praça defronte, conversar com outros cidadãos igualmente aporrinhados com a transformação do gabinete do prefeito em tenda de milagres. Às onze e trinta o prefeito convocou um pastor para "orar por Tião Miranda, que é o legítimo prefeito de Marabá", porque ele, Maurino, só "está prefeito por indicação e dádiva de Jesus" (que pelo menos até agora ninguém sabia que trabalha no TRE).
No Portugal de 1578 também se construiu um mito – o "sebastianismo" – em torno da volta de outro Sebastião, e tem gente que o espera até hoje. Lá, dom Sebastião era um rei que resolveu conquistar o Marrocos dos muçulmanos. Na batalha de Alcácer-Quibir, na África, o Tião português se lançou contra o exército mouro – como se fosse candidato à reeleição empunhando a compra de votos como arma infalível –, e também se deu mal. Sumiu. Escafedeu-se. Evaporou-se. Nunca mais foi visto, nem seu corpo encontrado. Então Portugal foi incorporado pela coroa espanhola, já que o rei da Espanha, Felipe II, também era neto de dom Manuel, o avô do primeiro Tião fantasma.
Em Marabá, este patético tianismo de Maurino e outros órfãos e viúvas de padrasto vivo periga nos levar a sermos incorporados por Itupiranga (se, claro, os itupiranguenses estiverem doidos para se meter com esta cidade arruinada por prefeitos falhos)... Mas, de volta à nossa prosaica feira da fé, uma irmã entoava alguns cânticos enquanto alguém vendia seu CD entre crentes e descrentes. "Acho que para completar o quadro faltou alguém vendendo Herbalife, cujo botton Maurino e vários de seus acólitos sempre usam na camisa", lamenta o cidadão. Encerrado o culto, aos 15 minutos para o meio-dia, o prefeito convidou os presentes para o seu "café da manhã". "Café da manhã? Além de tudo, a coisa toda avança pelo perigoso terreno do deboche, ainda mais porque custeada com dinheiro do contribuinte fiel, infiel, católico, espírita ou macumbeiro", pensava o cidadão. Após o tal café, o auxiliar de ritos avisou em altos brados, para fazer-se ouvir em sua autoridade, que Maurino ia atender primeiro as associações. Também não ia dar consultas, passagens ou muletas, porque esses milagres agora são feitos somente na Secretaria de Assistência Social. Assim, quem passou a manhã lascado e com fome na periferia do gabinete, ainda ia ter de ir à secretaria que fica do outro lado do rio Itacaiúnas, àquela altura certamente já fechada. Cansado, desiludido e faminto, o cidadão voltou para casa de mãos abanando e muitas indagações. Não seria malversação de recurso esse uso de equipamentos e servidores em sessões religiosas, quando a máquina deveria estar a serviço da comunidade como um todo e não apenas de uma ou outra igreja qualquer? Mesmo na remota possibilidade de justificar-se a utilização do gabinete do prefeito como local de práticas religiosas, não seria o caso de se fazer cultos ecumênicos, acessíveis à participação do contribuinte agnóstico, católico, babalorixá ou chegado a um terecô? Lamentavelmente, importa dizer ao cidadão que nada disso é justificável. Esse proselitismo político travestido de pastoral religiosa, financiado com recurso do erário, constituiu uma interface promíscua do tempo do Império no Brasil só encerrada quando proclamada a República em 15 de novembro de 1889. Em janeiro do ano seguinte o Governo Provisório decretou a separação da Igreja e do Estado. Ressuscitar, agora, essa prática, é anacronismo, atraso, dano à liberdade de crença, à laicidade do Estado e, pior, ao patrimônio público. (Publicado no Correio do Tocantins, em 10/07/2005)