'Eu sou de um país que se
chama Pará'
03 de
maio de 2013 | 2h 11
IGNÁCIO
DE LOYOLA BRANDÃO - O Estado de S.Paulo
BELÉM -
Quando a mediadora Renata Ferreira disse que o meu conto o homem que viu a osga
comer meu filho a tinha aterrorizado, assustei-me. Não tenho este conto. Ela
riu e explicou: "O que vocês chamam de lagarto ou lagartixa, chamamos de
osga. Aliás, está no Aurélio". Estava certa, o conto existe. Quando ouvi a
fotógrafa Elza Lima contar uma história minha em que os olhos dos cavalos do
carrossel de meu avô eram petecas, reagi: "Como petecas? Eram bolas de
gude". Elza: "Pois aqui, petecas são as bolas de gude".
Caminhava pelo Espaço Palmeira, um feirão popular, no centro da cidade. Aqui
foi uma tradicional fábrica de bolachas, biscoitos e doces, fundada em 1892.
Demolida, restou uma área de piso concretada sobre a qual se armam as barracas.
Então, ouvi: "Vamos fazer nossa sombra aqui", disse o mulato de
chapéu branco. E sentou-se com dois amigos num canto. Não havia sombra alguma,
ao contrário, era um solão, mas gostei da expressão. Porque grande e diverso é
o Brasil.
Vim para
a 17.ª Feira Pan-Amazônica do Livro, que no ano passado vendeu 850 mil livros,
me contou Paulo Chaves Fernandes, secretário de Cultura, arquiteto que criou as
Docas e o Mangal das Garças, imperdíveis. A Pan-Amazônica deste ano termina no
próximo domingo com Affonso Romano de Sant'Anna. Pelo palco principal passaram
Ziraldo, Tony Bellotto, Cristovão Tezza, Guilherme Fiuza, Tiago Santana e José Castello.
Para terem ideia, o folheto com a programação tem 74 páginas com oficinas,
seminários, aulas, lançamentos, mesas-redondas, salão do humor.
Tudo
acontece no Hangar, um centro de convenções moderno e funcional. Ao falarmos,
temos à nossa disposição auditórios variados que vão de 300 a 1.500
espectadores. Distante daqueles espaços fechados por divisórias de eucatex da
Bienal do Livro de São Paulo, onde a barulheira do salão penetra e ninguém ouve
o que se fala.
Lembrei-me
que estive na primeira Pan-Amazônica, ainda no centro, sufocada, apertada, mas
cheia de gente. Assim como me lembro de uma casa de sucos da terra, onde havia
um de pinha que era puro regalo. A casa fechou, virou loja. Por outro lado, nas
sorveterias você mergulha a colher em taças de sorvete de tapioca
(deslumbrante), buriti, bacuri, cupuaçu, açaí, graviola, manga. Quem me indicou
a Cairu como o melhor sorvete da cidade foi Fafá de Belém. Opinião
considerável. O Pará é terra da Fafá, da Gaby Amarantos, da Dira Paes, da Olga
Savary (que está na cidade em que nasceu, emocionada, há muito não vinha), Leah
Soares. E de Dalcídio Jurandir, um dos grandes escritores brasileiros de todos
os tempos.
A feira
deste ano foi dedicada a Ruy Barata, poeta, compositor, jornalista, político
progressista, ícone paraense, homem que navegou em todas as águas. Dele é a
frase epígrafe desta 17.ª Pan-Amazônica: "Eu sou de um país que se chama
Pará". Milhares de crianças vagando entre centenas de estandes.
Perguntando: "O senhor é escritor?". Correndo atrás do Ziraldo, que
se intitula "o velhinho maluquinho". Vi Ziraldo, com tremenda luxação
no ombro, cheio de dores, sentar-se e autografar centenas de livros. Mais do
que profissional, ele ama o que fez e adora ver a meninada em torno.
Certa
noite, fomos jantar nas Docas, olhando o rio de frente. Chegavam homens feitos
querendo tirar uma foto com o "menino maluquinho". Chegavam também
jovens querendo uma foto com Tony Bellotto, que tinha acabado de fazer uma bela
fala sobre seu romance Machu Picchu. Depois, elas viravam para mim: "E o
senhor é alguma coisa?". Respondi com a maior seriedade: "Não, sou
apenas pai do Bellotto". E elas: "Não precisamos tirar fotos do
senhor, não?". Felizes com minha negativa, partiam, ruidosas, enquanto
voltávamos ao filé de filhote, peixe delicioso, com risoto de pupunha e jambu,
e ao pato com tucupi. Belém é sabor e é necessário comer, de preferência à
noite, no Mangal das Garças, parque nascido à beira-rio, cheio de pássaros,
tartarugas, borboletário. Iguanas verdes, figuras pré-históricas, vagueiam
pelos gramados.
Tomei um
avião e cheguei a Marabá 50 minutos depois. O nome da cidade vem de um poema de
Gonçalves Dias. Região ligada à siderurgia e celebrizada pela Serra Pelada.
Estudantes e professores se juntaram no Cine Marrocos para conversar com
escritores. É a Pan-Amazônica expandida. A feira não acontece apenas em Belém,
vai ao interior, agrega, abre-se às populações. A ideia avança pelo Brasil. A
fotógrafa Elza Lima me contou que esta "feira fora de feira" nasceu
após a leitura de uma crônica, aqui, minha no jornal, falando de Fortaleza, da
bienal fora da bienal, quando autores vão aos bairros e às cidades do interior.
Andressa Malcher, coordenadora, apanhou a ideia no ar e desenvolveu.
Sentei-me
no palco ao lado de Ademir Brás, jornalista, advogado e poeta de primeira
linha. Ele descreve sua terra, a gente, as paisagens, o Rio Tocantins, manso e
largo, silencioso. Pequenas casas coloridas inclinam-se para as águas. A poesia
de Ademir oscila entre a ternura e a indignação, com ritmo e afeto. Por ele e
pelos jovens, soube do Pará. E contei das coisas de cá. Por que tanta gente de
talento como Ademir não chega ao Sul? Onde fica o muro que nos separa?