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domingo, 12 de agosto de 2007

A Arte em grãos - IX: Aziz Mutran Filho (1944-2003)

Aziz Mutran Filho publicou um único livro: “Retalhos de poesias”, lançado aqui mesmo em Marabá em 28 de abril de 2000, sob a chancela da Secretaria Municipal de Cultura. São 64 páginas com 34 poemas escolhidos entre o que produziu e datou desde 1964, além do “curriculum vitae” escrito quando fez 50 anos, em 29 de setembro de 1994. É desse auto-retrato que transcrevo sua própria definição: “Nasci sob o signo da balança, e por isto tenha vindo ao mundo na forma de contrapeso. Hoje olho para trás e quase nada vejo que me dê motivos para festejar. Fui durante esses anos todos, um ente repleto de contradições, polivalente por excelência, e comum no sentido mais literal da palavra. Contraí dívidas, fui cobrado e paguei. Aliás, paguei com juros escorchantes. Durante cinqüenta anos fui um servidor dos interesses alheios. Pouco tempo tive para dedicá-lo a mim mesmo. Na condição de “escada humana”, muita gente utilizou-se dela para subir. Num período, entretanto, que tive para mim, eu soube vivê-lo por inteiro. Conheci algumas terras distantes, nunca além das fronteiras do meu país. Convivi com pessoas as mais estranhas que se possa imaginar. Aprendi ofícios que hoje já não servem para nada. O dinheiro sempre foi o meu desafeto número um. Em troca, quando me deparava com ele, esnobava da sua cara. Gastei em sinal de protesto, para reafirmar essa nossa mal- querença. Tive um só amor, que para variar foi frutificar-se por além das minhas cercas. No quintal do vizinho. Em troca, fui feliz na tranqüilidade de uma união que durou até a morte da outra parte[1]. Vivemos a felicidade, mas estava escrito que nos separaríamos antes do outono. Não aprendi outras línguas. Não viajei pelos sete mares, como sonhei na adolescência. Não pilotei aviões como queria. Não cheguei a ser “doutor”, como previra o meu pai. Minha mãe foi para o céu quando eu mal completara dois anos. Por amar demais a minha pequena cidade, vou sendo um hospede constante de Marabá. Aqui espero morrer, e se possível ser cremado e ter as minhas cinzas jogadas metade no Itacaiúnas e a outra metade no Tocantins[2]. Sou pai de uma moça[3], para quem desejo uma vida bem diferente da minha. Plantei muitas árvores. Tenho uma paixão doida por tudo quanto é tipo de animal (irracional). Certamente é por esta razão que algumas pessoas me tratam como um homem de caráter. Amei a boemia e as serenatas. Hoje estou fazendo pausa na bebida e tampouco me agrada a noite. Gosto de ver as coisas com clareza. Sou um animal diurno. Escrevo poesias que algumas almas caridosas chegam a elogiar. Não peço dinheiro emprestado, para não receber negativas. Até que de vez em quando preciso e tenho vontade. em troca, sou perseguido por caloteiros que “farejam” quando tenho algum dinheiro no bolso. Depois de me ‘derrubar”, o elemento ainda se transforma em meu desafeto. Escrevi discursos explosivos, que os outros leram com grande eloqüência. Fiz ofícios, projetos, assumi a subserviência dos meus chefes, e desdobrei-me em rapapés para os chefes dos meus chefes. Isto, sempre a troco de nada. Tudo isto, para que eles crescessem e aparecessem. E como cresceram. E como apareceram. E como riram depois da minha cara de otário. Mas não me prendi nas cidades. Varei sertões como “comerciante” de galinhas e outros bichos menores. Perdi nesse negócio as poucas economias que tinha. Fui “peão”, trabalhando numa companhia estrangeira que aportou por aqui,durante um “castigo” que recebi da Ditadura. Nesse tempo de “peonagem”, pelejei por seis meses no cargo de faz tudo – carreguei pedras, madeira, cortei mato e fiz até curativos... Conheci a mata virgem em toda a sua brutalidade e grandeza. De volta à cidade, após ter comprado, com o saldo, duas mudas de roupa nova e um par de sapatos num “queima”, caí na esbórnia e depois de três dias no cabaré não tinha mais um tostão furado no bolso. Restaram-me uma malária que estava “encubada” e que a cachaça fez aparecer, e uma ressaca inominável, sem poder comprar um mísero sonrizal. O que posso falar mais? – Ah, sim, sou surdo de um lado. Dei um tiro no ouvido[4]." Espinhos
Não, não me deixes mais sozinho, caminheira errante dessas vias, viciada em percorrer caminhos, inferno este dos meus longos dias... E partes de maneira inoportuna, embora eu peça, implore, não me escutas. Inconsciente, persegues tal fortuna - miragem que tu chamas “minha luta”. E eu inútil, nem posso acompanhar-te pois se não sei o que queres e o que buscas nos momentos em que sinto evaporar-te – - a cada volta, satisfeito o teu capricho. nem te dás conta do tanto que definho com minha cruz e meu cocar de espinhos. Sempre e sempre Ocorrem-me lembranças vagas e desertas de vidas outras, em horas como dantes. Eu não sabia destas que despertas com a lembrança onipresente dos amantes e encho-me de cismas e de espanto- Não sei se é real e se estou certo que estou vivendo em tal o breve encanto e o que será de mim, quando me ver desperto. Concede-me, Senhor, viver a espera e não me encurtes a vida enquanto isso. Ah, se dormisse agora, quem me dera... E acordasse, e vive e despertado, e que ao vê-la inteira e preparada pudesse tê-la sempre do meu lado. Os anjos que vieram os anjos não disseram nada. Vieram os três, a três chamados, olharam a minha vida destroçada e foram embora ainda mais calados. Um, era a Morte, o que chegou primeiro; o outro brilhava numa luz intensa; o terceiro era uma espécie de coveiro - enigmas cruéis desta saudade imensa! Chamei-os em transe agudo, desvairado, não tendo um lenitivo ao meu alcance para a dor passada em pranto desolado. ... E não disseram nada, nem aliviaram a pena que teima, enquanto avança na direção do peito que mataram. (1991) No bar do Orlando Lá vem ela outra vez acompanhada. Quero não vê-la, mas infelizmente, é mesmo ela quem passa sorridente... E nem me viu a fita-la inconformado; nem um olhar se dignou a dar-me. e despeitado ou desesperançado fui ao Bar do orlando embriagar-me. Ninguém dessa tortura apercebeu-se, pois na face contorcida de agonia um sorriso magoado aparecia. mas, após um trago e mais outro trago ardente do copo amigo pousado à minha frente seu descaso tornou-se indiferente. (Marabá, 1968) [1] Tarcisa [2] Ao contrário do seu desejo, o poeta está sepultado em cova comum no cemitério da Velha Marabá [3] Corina [4] Suicida que era, Aziz também cortou os pulsos e acabou se enforcando numa árvore ao fundo do seu quintal. ************** O suicídio do poeta pegou a todos de surpresa e comoveu amigos e contemporâneos. Um deles, Amin Zalouth, igualmente de origem sírio-libanesa, dedicou-lhe este belo poema: Réquiem para Aziz Amim Zalouth – março/2003 Que tristeza teres ido embora assim, Aziz... No passaporte, apenas visto de partida. Nenhuma palavra sequer de despedida! Mas eu espero, nessa tua outra vida, compensando a existência aqui sofrida, tua alma n’outro plano consiga ser feliz. Caro demais o preço da tua procura! Deste-te fim num gesto de loucura e sem te preocupares com palavras de censura, chutaste o balde transbordante de amargura... Melancólicos no fim da tarde madura dobraram por ti sequer os sinos da matriz? Foste assunto para tantas, em cada esquina, Línguas compridas, afiadas, sibilinas das comadres, vorazes aves de rapina, vendo-te imóvel, cheirando a naftalina, a julgar tua sorte, a tua sina, como se fossem da tua vida o juiz... Inerte agora, sozinho numa cova, não ouves quem tua ida chora, reprova. Quem te deu na última hora uma prova de amizade? Amigos? Amigos, uma ova! Quem leu p’ra ti, na despedida, uma trova, ou ofertou uma rosa, um jasmim, uma flor de lis? Aqui, a vida mudou pouco, quase nada: nosso minério indo embora pela estrada, o sol castigando as ruas, as calçadas, a lua brilhando intensa n’alta madrugada, e logo mais, quase manhã, na alvorada flores serão arrancadas com galhos e raiz. Renunciaste à tua cruz, ao teu calvário... E não se encontra em qualquer livro ou dicionário tanta coragem para fazer o itinerário da estrada onde agora segues solitário, sem dia, sem noite, sem regras, sem horário, rumo à luz branca, intensa, alva como giz. Era cedo ainda para ires embora, mas, já disse o poeta, quem sabe faz a hora, e só tu mesmo podias ver a atua aurora. Partiste. Aqui, a lembrança se demora... Rezamos por ti. Vai em paz.Sejas feliz. Mas foi triste teres ido embora assim, Aziz….

4 comentários:

Val-André Mutran  disse...

Estou muito comovido e emocionado. Basta! E é o que tenho para te agradecer.
Muito obrigado pelo resgate de um craque.
Meu único tio legítimo: Azizinho.
Que Deus o tenha bem recebido.

Ademir Braz disse...

E o Azizin anda fazendo falta com sua inteligência ácida nessses tempos de mediocridade.
Deixe desculpar-me: você estefve aqui e não fui vê-lo - sem dindin, a sinusite atrapalhando o enredo e eu fechado pra balanço,
É ruim, hããããã!?

Anônimo disse...

Ademir,


Quando Azizinho estava sóbrio, raramente falava comigo. Creio que me colocava na categoria dos "estrangeiros" de Marabá. Mas, quando estava embriagado - ah, maravilha!!! - conversávamos muito, ríamos muito.

Muitas vezes eu o encontrei no Bar do Orlando, onde eu ia comer o maravilhoso pastel de macaxeira.

Numa das enchentes, quando a água já lambia a Antonio Maia mas o velho Orlando resistia ainda - impávido colosso! - nos encontramos ali e ouvi de Aziz a mais bela descrição da enchente, dos moventes e semoventes que com ela conviviam. Lamento não ter gravado ou escrito.

Obrigada por me fazer lembrar desses bons momentos.

Beijo.

Val-André Mutran  disse...

Tenho muitas saudades dele Bia...Muitas.

Ele sóbrio era realmente outra pessoa. Afetado pela bebida, danava-se a nos surpreender sempre!

Muito obrigado pelo teu desprendimento e sabedoria ao separar o joio do trigo. Você é referência para nós todos do Carajás.

Um bom domingo para você.