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sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Charles Trocate: simples assim

O tempo de criar do artista militante é o tempo do combate

14 de julho de 2014
Por José Coutinho Júnior
Da Página do MST

Charles Trocate é integrante do MST no Pará. Além de sua atuação política na região, desde cedo Charles se interessou pela literatura e se tornou poeta. Em 2012, foi nomeado para a Academia de Letras Sul e Sudeste Paraense. 

Segundo suas palavras, sua poesia é metafórica, mas também define mundo. Ela é parte da realidade em que vive e tem a função de problematizá-lo.

Em entrevista à Página do MST, Charles discute o papel da arte dentro do Movimento, fala sobre seu fazer poético e político e como o MST se tornou um grande acontecimento cultural para seus militantes.  

Quando você entrou no MST? 

Minha família participou de uma ocupação de terra nas proximidades de Serra Pelada. Na década de 1990 a gente morava no que se transformou em Parauapebas, que até então era um distrito de Marabá. 

Em 1992 eu e minha mãe vamos para a segunda ocupação do MST na região, e de lá participo de um curso de formação com mais 120 jovens do Pará, Maranhão, Piauí e Goiás. Foi assim que se massificou a formação no MST: inserindo a juventude em cursos, e esses jovens vão se tornar os dirigentes do Movimento nessas duas últimas décadas.

Como surgiu seu interesse pela literatura?

O ano de 1993 tem uma ligação muito umbilical com minha militância. Estava ávido por conhecimento. No curso, comecei a trabalhar na biblioteca, e nos tempos livres que tinha, lia. 

Aprendi de uma maneira muito difícil e densa, e isso se reflete na minha obra, pois vou ser acusado de ser um poeta muito difícil. Comecei a ler um livro do Mario Benedetti, e depois que li esse livro, decidi ser poeta.

Dias difíceis
(Para João Paulo Santos)
Os dias estão difíceis e não há reparação nisso.
Emoldurado no tempo dispenso a morte
Cavo nos olhos da política a palavra desagradável.
Enfrento com poesia a estupidez até expor
O brilho dessa emoção diária - lutar.
Quero a repartir entre nós este abraço fraterno
A carne que brame em seu covil
e nesta voz não remida desdizer a fome.
Arrasto do mar a lírica e na noite condenso
o grito suado na garganta. A fé, contudo,
irrompe corpo e idéia.

Você frequentou a escola?
Em 1989, eu fui numa escola chamada Carlos Drummond de Andrade.  Lembro que até aquele ano nunca tinha usado um tênis. Minha mãe mandou comprar um tênis e sonhei a noite inteira em calçar ele no dia seguinte.

Mas fiquei só até o meio de julho, porque briguei com um garoto que ficava tirando sarro da minha mãe e fui expulso. Voltei pra escola depois, mas já tinha minhas obrigações e vontades.

Você aprendeu a ler na escola?

Não. Minha irmã era autodidata, e ela fazia a gente ir pelas ruas, catar rótulos de várias embalagens, envelopes, e a gente lavava e aprendia a ler as consoantes, vogais... ela também  saía com a gente para ler placas. Aprendi a ler assim.

Durantes essas duas décadas de MST, adquiri o hábito de ler, principalmente a leitura socialista, e tento suprir a parte acadêmica e o que é importante conhecer para alterar essa conjuntura e tempo histórico. Com isso perdi o encanto da universidade. Não quero dizer que não vale a pena ir, pelo contrário.

Devastado
Não se faz poema assim,
com cisco no olho
estaca no coração
Estranhamente devastado pela dor.
Não se vive assim!
Não assisto meu tempo passar.
Duelo no mínimo todo dia
e no máximo amo!
É assim?


Por que perdeu o encanto?

Porque fazer militância no Pará é algo a duras penas. O inimigo te ataca todo dia, não há descanso. Construir o movimento camponês no Pará após três décadas ininterruptas de assassinatos de lideranças sindicais, onde mais de 900 camponeses perderam a vida na luta contra o latifúndio é uma tarefa muito difícil. 

Então o momento que tive de ir à universidade utilizei na construção do Movimento. Hoje perdi o encanto porque não vejo a possibilidade da universidade, especialmente na minha região, me dar mais do que já sei nessa minha disciplina de estudar sempre. Mas a tarefa de todos nós, dirigente e quadros, é de continuar estudado, não importa como ou onde. 

“O que se janta na história

No porão do delírio enquanto fugimos?
Cansa-me 
O adeus dos camaradas
O aceno tísico 
Dos debates.

Nada mais é tão distante
Que o lugar que quero chegar
A desgraça do momento
Não tem máscara 
E é miúdo o dorso 
Das perguntas” 

Quem são os poetas que você considera referências?

Recebo a influência do Mario Benedetti, que está no panteão dos meus melhores amigos de viagem de literatura. E colado com ele vem Pablo Neruda. Com esses dois vou aprender a dimensão do poema metáfora. No meu primeiro livro, Poema de Barricadas, de 2002, a segunda parte tem toda uma influência Nerudiana e Benedettiana.

Depois disso vou ter contato com o poema conceito do Drummond, que me ensina a poesia não pode ser só metáfora, tem que definir mundo. 

Fui mais adiante, descobri Maiakovski, que vai me dar uma dimensão de que poeta é aquele que cria sua própria forma de poetizar. Com esses poetas, Drummond, Neruda, Benedetti e Maiakovski, vou caminhando até agora. 

Qual é sua forma de escrever poesia? 

Literatura para mim é uma profissão de fé. A poesia está ligada ao mundo prático, ao real que se prolonga por outras tantas imaginações. E ela também é emoção. A arte é sempre uma realidade dominada. 

Minha forma de fazer poesia é dominar a realidade, convocando tudo aquilo em forma de técnica que possuo, transformando em emoção para que alguém que leia lá na frente sinta que alguma coisa que foi dita tenha a ver consigo, seu mundo, sua perspectiva.  

E para apropriar-se da realidade é preciso uma técnica. O escritor é aquele que escreve todo dia, e não só quando está inspirado. 

A sua obra é baseada na realidade. Por que muito da literatura que vemos hoje está deslocada do mundo?

Evidentemente a indústria cultural brasileira não está interessada na poesia ou literatura que fazem as pessoas pensar. 

A sociedade brasileira foi induzida a isso: encontrar escritores que resolvam seu mundo por meio da literatura, e não a partir dela descobrir as várias chaves para outros mundos que se poderia ter. Da imagem mais corriqueira pode se extrair uma universalidade, abre-se e fecha um conjunto de possibilidades.

Houve resistência ao seu tipo de poesia, dentro e fora do MST? 

Há um elemento na constituição do MST que nos levava a resistir a esse tipo de arte. A arte tinha que ser dualista: aqui está o bem, aqui está o mal. Não há dialética nesse tipo de arte e poesia. 

O que eu quis fazer com minha poesia foi mostrar que entre o bem e o mal há uma dialética. Mas essa poesia só foi ganhar sentido porque o MST enquanto sujeito coletivo tem se transformado para essa perspectiva. A arte no Movimento deixa de ser dual, o bem e o mal.

Também escapei desde cedo desse trinômio que todos poetas caem facilmente: Deus, mulher e religião. Sempre quis articular outro trinômio: sujeito, política e história.

Em relação à sociedade, eu nunca subordinei a literatura a minha identidade ideológica, muito embora ela seja resultado disso. Sempre combinei o que penso e imagino, sem abrir mão de dialogar com todas as estéticas e sem rebaixá-las a outro nível. Sempre quis dar uma qualidade literária, e minha filiação ideológica é parte dessa qualidade.

Isso abriu um conjunto de reconhecimentos. Fico até satisfeito a essa altura minha poesia ter atingido um significado que não só me favorece, mas favorece a organização em que faço parte.

“Tempo de dúvidas já passou
Ando avesso ao que é inútil e medroso
A galope
Pisando o solo dos mundos
Passará 
O verão da angústia
Porque a vida não sabe possuí-la!”

Você acredita que qualquer um pode se tornar poeta?

O MST é um grande acontecimento cultural na sociedade brasileira. Ele vai articular o pensamento clássico da sociedade, ou seja, não haveria assento para o MST na história se não tivéssemos estudado o melhor que a sociedade produziu em termos de desnudar as nossas contradições, as nossas possibilidades enquanto povo, formação cultural, perspectiva futura.

Mas junto com isso se articula no Movimento uma teoria revolucionária. E o elemento mais decisivo é que no meio do povo é que estão os talentos do MST. 

Imagine quantos homens e mulheres não se refizeram desde que entraram no MST. Como o Brasil não resolveu suas contradições, esses homens e mulheres cheios de possibilidades se recriam no Movimento, e no meio disso estava eu. 

“Na garganta

Outros mormaços se fazem
Chamo para uma dança sem fim
                    a racionalidade
Mas ela foge em disparada
E acena um raro pacto
Íntimo.”

Como conciliar o fazer artístico com a militância política? 

Existe uma coisa que o MST não separou que é o trabalho manual do intelectual. Ainda se exige do artista do MST combate na literatura e literatura do combate, mas na medida em que você vai resolvendo os muitos problemas e contradições, não só do Movimento mas da vida e da sociedade brasileira, haverá de sobrar mais tempo para outro tipo de arte. 

O tempo de criar do artista, nessa conjuntura, é o tempo do combate. Por exemplo, dentro desse ideário estético do MST, nós precisaríamos posicionar melhor nossos quadros que estão na universidade, para ajudar a recriar o verdadeiro papel da universidade, permitindo que ela receba o povo. 

Qual sua opinião sobre os saraus da cidade?

Minha fé em relação a esse tipo de literatura é que cada esquina se transforme em um lugar desse, que são encontros criativos e bonitos. Para quem faz, minha admiração. Já fui no bar do Binho (em São Paulo), recitei lá, achei fantástico. 

Assim como no campo também é bonito ver os festivais da escola, que mostram a arte como algo criador. Se a arte é o que nos tira do reino da animalidade e nos leva para o da verdade, devemos atravessar esse caminho. 

Cotidiano
Para Lidenilson
Escavo profundezas no coração do tempo.
É quase horizonte meu gesto.Com ele tenho caminhado
sem deixar a exaustão alojar-se
onde mais humano sou

Cavo no chão o assunto do amor;
Com ele aprendi a residir na pele da noite
com a bandeira da vida.

Sim. É preciso caminhar:
enfrentar o dragão que insulta
o pão que ponho à mesa com o músculo da luta
a genial invenção da felicidade

Quantas obras você tem publicadas e quais são seus próximos trabalhos?

Meu primeiro livro, o Poema de barricadas, foi lançado em 2002. Em 2007 veio o Ato Primavera e Berndardo, meus poemas de combate. (2007)

Para sair tem o Casa das Árvores, livro bilíngüe, em português e espanhol, que é uma forma de devolver o que aprendi com os poetas latinos. 

Também vão ser publicados Conversa com louças e Expedito: 5 poemas sobre cidades ou 5 poemas para o crânio do outro, onde eu vou dar minha versão sobre as cidades onde andei. 

Ainda vou escrever um livro chamado Gabriel e outras orquídeas no bolso. Depois encerro esse ciclo poético e vou tentar escrever pelo menos uns três romances. O primeiro vai se chamar A mulher que cheirava Carne. 

Um comentário:

João Dias disse...

Caro Dr. Ademir,

Que bela entrevista. às vezes não nos damos conta da dimensão do poeta e do que ele tem a dizer, sem se contaminar ou impressionar pela sombra dos grandes vultos literários.
PARABÉNS ao Charles para a alegria dos leitores do Blog Quaradouro!

joão Dias.