Luiz
Flávio Gomes, jurista
01.
NUNCA ANTES NESTE PAÍS tantos políticos foram implicados num único escândalo:
Humberto Costa (senador, PT-PE: teria recebido R$ 1 milhão), Sérgio Guerra
(senador, PSDB-PE: R$ 10 milhões), José Jatene (deputado, PP-PR: de 1% a 3% dos
contratos superfaturados), Renan Calheiros (senador, PMDB-AL: R$ 400 mil),
Gleisi Hoffmann (senadora, PT-PR: R$ 1 milhão) e Eduardo Campos (ex-governador,
PSB-PE: R$ 20 milhões). Somente o delator Paulo Roberto Costa (ex-diretor da
Petrobras) teria citado 32 parlamentares, além de outros políticos (Estadão
23/11/14). A maioria dos nomes está sob sigilo, no STF. Várias outras delações
estão sendo feitas (Youssef, Barusco, Renato Duque etc.).
02
Alguns dos nomes citados já morreram (Sérgio Guerra, Eduardo Campos e José Jatene).
Todos os demais políticos assim como seus respectivos partidos negam o
recebimento de qualquer quantia de forma ilegal. Os executivos e presidentes
das empreiteiras optaram pelo silêncio ou disseram que foram
"extorquidos". Muita tarefa probatória pela frente. O ministro do
STF, Teori Zavascki, quando da homologação da delação premiada de Paulo Roberto
Costa, sublinhou: "Há elementos indicativos, a partir dos termos do
depoimento [de PRC], de possível envolvimento de várias autoridades, inclusive
de parlamentares federais". Ninguém sabe quais serão os efeitos políticos
do escândalo.
03.
NUNCA ANTES NESTE PAÍS a Justiça teve acesso a tantas provas (ainda precárias,
porque não submetidas ao crivo do Judiciário) sobre o que todos sabiam, mas que
ela nunca tinha em seu domínio de forma volumosa: há, não só na política e nos
órgãos públicos (no Estado), senão também (e, sobretudo) no
mercado(especialmente no nacional), incontáveis pessoas sem qualidades, que
sempre acumularam fortunas de forma ilícita. Os internautas digladiadores, de
tão centrados nos seus alvos prediletos (os partidos e os políticos
adversários), muitas vezes se mostram cegos para a realidade do mercado
corrupto e da abrangência do escândalo (que vergasta não somente o PT, senão
todos os grandes partidos do país). Não atinam para o fato de que o novo
sistema de liberdade constitucional, suscitado engenhosamente para corrigir e
extirpar os abusos do pretérito despotismo militar, fulcrado na exploração dos
menos favorecidos, se fez democraticamente cúmplice obsequioso das oligarquias
reinantes, abrindo-lhes as portas de forma solene e servil, dando-lhes
legitimação política.
04.
O escândalo da Petrobras (cujos efeitos políticos são absolutamente
imprevisíveis) não revela apenas mais uma faceta das crises cíclicas presentes
em todos os países, crises típicas do crescimento ou da estagnação das nações.
Ele escancara um tipo de crise final, entendida não como o fim do país ou da
Petrobras ou do povo brasileiro, sim, como patente e progressiva impossibilidade
de subsistência do nosso modelo de organização social, administrativa, jurídica
e política. Não se trata de uma suposição conectada com o futuro, sim, cuida-se
de uma realidade, de uma constatação do que está acontecendo hoje no nosso
país.
05.
Civilização ou barbárie? Chegamos a uma encruzilhada muito delicada, porque a
alternativa à civilização que é vista no horizonte é a da barbárie da máfia. O
Brasil, tal como a Sicília e o México, pode se converter num dos países mais
mafiosos do planeta (caso não tome o rumo da civilização das suas instituições
políticas, econômicas, jurídicas e sociais). Nos países mafiosos o crime
organizado invade até às vísceras a política, a polícia e a Justiça,
desenvolvendo seus "negócios" por meio da fraude, da corrupção, da
ameaça, da violência, do medo e da omertà = silêncio. O Brasil, pelo que se
sabe, ainda não chegou a esse ponto, porque ainda não houve a junção dos vários
crimes organizados que atuam no país (o dos poderes privados, como o PCC, o das
milícias, o das polícias e o político-empresarial, que protagoniza o escândalo
da Petrobras). Mas essa combinação de fatores e de procedimentos estaria
afastada?
Saiba
mais:
06.
O fato de que alguns crimes organizados estejam se enriquecendo cada vez mais
(esse é o caso do PCC, do crime político-empresarial que está dizimando a
Petrobras etc.), de forma absurdamente criminosa, mediante os expedientes da
fraude de licitações, da sonegação fiscal e da ilicitude dos contratos e
serviços, não significa boa saúde para nossa decrépita e fúnebre organização
social, ao contrário, a acumulação de capital, quanto mais injusta e/ou
corrupta, mais exterioriza a fraqueza do grupo, cujas patologias graves são
públicas e notórias, em razão, sobretudo, das formas selvagens de exploração do
humano, da natureza, do Estado, do Direito e das próprias instituições. Criamos
uma anômala organização social em que a extrema desigualdade se perpetua e se
agrava a cada dia, sobretudo por meio de expedientes ilícitos que sempre
permearam a vida de todos os governos bem como de todos os maiores partidos
políticos do país, cujos seguidores, com viseira limitadora, só conseguem ver o
mal nos seus contrários.
07.
Muitos dos estimados leitores podem não concordar com nossa tese (de que nos
encontramos nos estertores de uma crise que já se aproxima velozmente do seu
final, exigindo de todos nós a tomada de uma posição firme, que se bifurca
entre a civilização e a barbárie mafiosa), que seria exagerada e, em última
análise, misantrópica, porém, a rigor, se trata de um quadro sombrio e
carregado fundado na realidade nua e crua do nosso país, cada vez mais
violento, fraudulento, corrupto, parasitário, desigual, ignorante, segregado e
intolerante. Somos um país com violência epidêmica (particularmente a partir de
1980), corrupção endêmica, desigualdade obscênica, escolaridade anêmica e
fraqueza institucional sistêmica, tudo isso protagonizado por uma sociedade
anômica (anomia = ausência ou ineficácia das normas). Por acaso não era esse o
cenário assombroso vivido pela Sicília nos séculos XVIII e XIX, até se
converter no berço da máfia?
08.
Por acaso esse não é o mesmo cenário pungentemente descrito no livro O
leopardo, do escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), que se
transformou em filme pelo cineastra italiano Luchino Visconti (com Burt
Lancester, Alain Delon e Claudia Cardinale)? Vista nossa realidade com
imparcialidade (e muita preocupação), será que o mal que tomou conta do país
(desde seu descobrimento), mal que anda carcomendo todas as relações sociais
assim como as instituições, não teria semelhanças com paisagens e cenários
históricos de outras plagas? Como negar que o crime organizado já se apoderou
de grandes parcelas dos poderes instituídos? Não seria grande ingenuidade não
ver no escândalo da Petrobras somente a ponta de um iceberg monstruoso composto
por uma troyka maligna (agentes públicos + agentes econômicos + agentes
financeiros) que não tem outro escopo senão o de promover a pilhagem do
patrimônio público por meio de uma parceria público/privada (PPP-PPP)?
09.
A paisagem do livro O leopardo encontra enorme eco na nossa realidade, que se
agrava a cada dia em razão da corrupção, da violência e da miséria. Caminhamos
para uma situação de absoluto desespero, mesclado com ira e indignação, o que
sugere mudanças radicais em favor da civilização ou todos sucumbiremos aos
métodos mafiosos, nascidos na Sicilia, a partir de um cenário muito semelhante.
Quando a Justiça e o Estado de Direito se esvanecem, nos descarrilhamos
naturalmente para a lei da selva, ou seja, a lei do mais forte, que conduz a
nação não com a força do Direito, sim, com o direito da força, da violência, da
corrupção, do engodo, do medo e da omertà (silêncio). No final do escândalo da
Petrobras, que nada mais significa que a metástase da organização social que
fundamos há cinco séculos, será que não ficaremos todos novamente estarrecidos
(mas ao mesmo tempo indiferentes) com a atualidade daquela famosa frase do
príncipe de Falconeri (do livro O leopardo), que dizia "tudo deve mudar
para que tudo fique como está"?
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