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segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Memória de dois americanos sem rumo

Naquele remoto 7 de maio dum ano que não recordo, Curionópolis em festa comemorava 16 de emancipação. Havia inaugurações na cidade e em Serra Pelada, onde se abria um estádio de futebol com muitos jogos, homenagens às mães, e ginkana estudantil entre colegiais do estado e do município. Sebastião Curió, o prefeito, estava sentado no centro e à frente do palanque construído na porção mais alta da margem da estrada que rasga a cidade ao meio, assistindo desfile escolar com banda de música, e você jurava tratar-se de um faraó cercado de políticos e cortesãos. Em Canaã dos Carajás, o cyber-café sem café e sem água ficava ao lado da TV Liberal. Ambos, ninguém diria, até dois anos atrás não passariam talvez de sonho para a comunidade quase isolada entre florestas e morros na esquina da Serra de Carajás. Íamos pela tarde daquela segunda-feira e divertia-me a impaciência com que os dois americanos aguardavam a morosa abertura de acesso ao sítio que buscavam no ciberespaço, talvez ansiosos de saudade da sua civilização. Era tanto o calor que doía-me a cabeça. O motorista Marinho cochilava sentado perto de mim e lá fora o tempo ameaçava desabar como um castigo sobre Armagedon e o resto de floresta. O advogado Mark London estava sentado à frente da tela azul e branca do computador e segurava a cabeça com as duas mãos. O outro, Brian Kelly, teve mais sorte: sustentava o queixo com uma das mãos cujo braço apoiava no balcão baixo do computador confinado entre divisórias que não davam qualquer privacidade, mas conseguira chegar ao lar e estudava textos do U.S News, do qual era editor-executivo. Eu imaginava, com certo prazer maligno, com áspera perfídia, como reagiriam os dois se soubessem que, a despeito do nosso atraso tecnológico, a vizinha Parauapebas tornara-se o centro nacional dos mais ladinos hackers do Brasil. Juntos, Kelly e London revisitavam essa parte do mundo que conheceram nos anos 80 do século passado, num tempo em que 80 mil homens desmontaram a muque e transportaram nas costas, em porções ensacadas uma a uma, a serra inteira cheia de ouro. Dessas andanças e lambanças escreveram um livro sobre aquela tragédia amazônica. Só depois li o livro, livro fantasioso e romanesco, embora tratasse com com a crueza necessária o faroeste instalado em todo o sul do Pará. Agora eu os ciceroneava ouvindo-os falar em sua língua arrevesada, saída das fossas nasais. Brian Kelly mantinha-se calado desde que começara a jornada. Não falava português, não falava espanhol, não falava. Parecia um bacurau mal-humorado a tentar esconder-se como mãe-da-lua sobre um toco e desde o começo nos ilhamos num ressentimento birrento e mútuo que durou toda a viagem. Mark London falava pelos cotovelos com Kelly ao mesmo tempo em que dirigia-se a mim em espanhol e eu respondia em marabanês – quem quiser que aprenda minha língua. De pura sacanagem, a intervalos eu falava rapidamente com Marinho, caladão e atento ao volante, e lhe dizia coisas sem contexto e sentia o gringo a espichar as oiças para ouvir, tentar entender sem entender. Besta perda de tempo com a mais lascada provocação... O que eu fazia era indagar do motorista o que ele achava da estrada, que tempo levaríamos naquela cruzada desde Marabá, no calor insuportável, e ele respondia por monossílabos suspeitos e ininteligíveis sem olhar-me, no seu jeito tímido esquisitão, e eu continuava a falar sobre qualquer coisa sem importância, só por falar, falar, falar, animado demônio falastrão e crisipeiro - o que assanhava ainda mais o despautério gringo eh eh eh. A viagem durou todo o dia e suas metas vieram pela metade: não fomos ao garimpo e só passamos por Eldorado de Carajás, onde deu ao menos para ver o monumento à chacina de trabalhadores sem-terra e à impunidade que acalanta os criminosos. Gastou-se verbo em demasia numa entrevista com Sebastião Curió, em Curionópolis, e faltou racionalizar o tempo. Por fim, não sei bem o que se foi fazer em Canaã, uma cidadezinha inventada fora do tempo e do espaço, no fim de uma picada que conduz a lugar nenhum.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bom dia, Poeta.

O que se foi fazer em Canaã é irrelevante.

O resultado é que é ótimo: essa crônica maravilhosa, da qual eu mudaria só o título - "O homem que falava marabanês".

Abraço. Grandão.