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segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

História de jornal e jornalistas

Tenho a mania de guardar coisas velhas, em geral inúteis: agendas anotadas, recortes de jornais, canetas vazias, pecinhas de plástico ou metal que não sei para o que servem. Pedras, tenho-as às dezenas. Trouxe-as de todos os lugares por onde passei, inclusive do centro geodésico do Brasil, nas cercanias de Brasília, onde um provável extraterrestre construiu um calçamento redondo, em concreto, para o pouso de discos-voadores. São pedras de cores, textura e tamanho diversos, desiguais também no formato: redondas, compridas, oblongas, chatas, lisas, ásperas; as porosas têm a cor do ferrugem. Há uma redonda, branca e perfeita esfera densa e mais pesada que qualquer outra do seu tamanho. Guardo-a desde os anos setenta quando, em Belém, ganhei-a de um pai de santo apresentado por mãe Irá, como chamo à dona Iracy Pinto, mãe de Lúcio Flávio Pinto, Raimundo José, Elias, Luís e outros fabulosos santarenos ligados ao jornalismo. Um dia lhes conto a história dessa pedra, filha de outras criadas numa vasilha d’água posta no altar da devoção do ex-servidor do Arsenal de Marinha. Assim de memória, recordo lembranças do rio Araguaia, de Serra Pelada, do Salobo, do Inflamável, das praias de Iracema e do Calhau, da lagoa da Princesa, em Maiandeua, e daquele lago cor de coca-cola existente em Salvaterra. Sim, da Vigia ainda há uma lasca de pedra preta, e de Macapá umas pesadas amostras do minério de ferro que brota à flor da terra no meio do cerrado. Lembro-me também de um afiadíssimo e pré-histórico machado de pedra achado ali pela área agora transformada em favela depois da ponte do Tocantins. De São João do Araguaia restam-me uns pivôs de cristal, tal como a ametista rosada que achei em Itamirim. As pedras mais bonitas, entretanto, vêm de um certo trecho do porto do Cabelo Seco, onde voltarei qualquer tempo para renovar a coleção. Antigamente, antes da invenção da escrita, quando um amigo ou parente dileto deixava o povoado, aquele que permanecia quebrava um objeto de cerâmica e dava um pedaço como lembrança para o que partia. Minhas pedras são, assim, visões e saudades cristalizadas. Tal como as pedras, igualmente coleciono sementes. São tão antigas que jamais germinarão. Mas me recordam Soure com suas trepadeiras rosadas; Goiânia e as calçadas cheias de árvores; Brasília e o desmantelo das cores do cerrado; Itupiranga e as mangueiras frondosas na rua da beira, mais tarde destruídas por um prefeito insensato. São tantas!... Da ilha de Romana, onde o Atlântico ora é verde, ora azul mediterrâneo, trouxe uma palma de mandacaru que virou planta enorme e hoje ornamenta meu jardim. Aqui, ele perdeu todos os espinhos e dá uns botões vermelhos, fechados como verrugas. De Santa Isabel do Pará, onde me deram título de cidadania e de honra ao mérito, tenho em casa dois pés de hibisco hibrido: no centro do cálice da flor estrelada forma-se outra flor, esta de pétalas felpudas. A essa planta única, chamam-na por aqui de papoula. Do mundo encantado e pantanoso do rio Jararaca, interior de Muaná, havia uma “rosa verde”, de folhas duras e talo perfumado como pau d’angola, cujo chá fortalece o coração para as coisas do amor. Essa roseira, creiam-me, apenas sumiu, encantou-se, deixou o vaso intacto e nunca mais a revi. No meio desses guardados achei dia desses certa preciosidade: a carteira profissional n. 54564 série 193, datada de 25 de agosto de 1968, com a foto de um rapaz de 20 anos e olhos cheios de espanto. As últimas páginas dessa peça de museu estão imprestáveis: um banho de tinta azul para almofada cobriu todas as anotações relativas a férias, imposto sindical e mudança de salário. Já os seguidos contratos de trabalho estão intactos: The Western Telegraph Co. Ltd.; Jornal A Província do Pará Ltda.; Prefeitura de Marabá (nos anos 70, quando vim em dezembro de 73 como correspondente da Província do Pará e do Estado de S. Paulo, que montara uma sucursal em Belém); Assembléia Legislativa do Estado; Engicol; Prefeitura de Marabá outra vez e outra mais já nos anos 80, e depois algumas anotações formais da Marabá Comunicações Ltda, que edita o Jornal Correio do Tocantins, antes dos dois anos seguidos como editor-chefe da TV Liberal em Marabá. Os contratos de trabalho com o Correio do Tocantins – um deles durou exatos 30 dias, de 1º a 31 de março de 1989 – não correspondem à realidade. De fato, começamos a trabalhar a partir maio de 1986, quando retornei a Marabá na presunção de ficar de uma vez por todas na terra dos meus pais. É que entre Mascarenhas e eu sempre houve uma relação de amizade e respeito mútuo, daquele tempo em que um fio de cabelo de barba assegurava os tratos feitos, ainda que nem ele nem eu tivéssemos barba para arrancar, muito menos para dar em garantia de qualquer coisa. Escrever sobre isso agora é reviver uma experiência única. Quando aportei aqui nos anos 70, saltei da impressão em placas de chumbo derretido de A Província para o mais antigo processo de impressão já visto em minha vida: em O Marabá, de Sarmento Júnior, montava-se na gráfica os textos letra a letra catada numa larga prateleira de madeira, separada cada uma por tamanho e estilo, algumas tão pequenas que precisavam ser apanhadas com pinça. A rotativa era acionada pelo impressor com os pés, a fazer girar aos trancos um conjunto de roldanas para imprimir, com um baque surdo, página por página. Seguramente aquele máquina era a mais legítima invenção de Guttenberg, anterior às técnicas de imprensa movida a vapor em 1814. Onde será que se encontra aquela relíquia? Aí por 1976/77, surgiu em Marabá o Jornal de Vanguarda, da família de Osório Pinheiro. E de repente estávamos lá: Raimundo Rosa, Sinhozinho Morbach, Aziz Mutran Filho, Frederico Morbach, Mascarenhas Carvalho e eu. Bem que se tentou, é verdade, mas estava claro que não ia dar certo... Misturávamos aguardente, paixão política, crítica à ditadura militar, ao governo local e do Estado, ao sistema capitalista e arrebentamos com a imagem de certas instituições federais inoperantes aqui instaladas. Encurralado, Osório Pinheiro fechou o Vanguarda e não se falou mais nisso. Eu não sei em que circunstâncias nasceu o Correio do Tocantins, que fez 25 anos dia 15 de janeiro. Eu já havia migrado para Santa Isabel do Pará e trabalhava com Plínio Pinheiro Neto, então deputado estadual, na Assembléia Legislativa do Estado. Mascarenhas e seus sócios começaram bem: escalaram o competente jornalista Carlos Mendes, de Belém, para fazer o quinzenário. Somente a partir de 86, quando participei da equipe, é que fui sentir a barra que era fazer um jornal de qualidade em Marabá. À medida que as páginas iam fechando, corria-se para o terminal rodoviário defronte em busca de algum conhecido que as levasse para Belém. Danação mesmo era para remeter as partes finais, polícia e primeira página, quando chegávamos a ficar até duas três horas da manhã de plantão na plataforma atrás de um rosto amigo. Não foram poucas as vezes em que o “rosto amigo” deu descaminho à semana inteira de trabalho, telefonemas, andanças, entrevistas e redação de retrancas numeradas. Aí o jornal atrasava e dava na gente uma sensação de impotência e desânimo até juntarmos os cacos e tentar recompor o que se perdera. Quanto tempo faz? Parece que foi ontem... Hoje, ao manusear os arquivos do Correio do Tocantins qualquer pessoa tem de repente a nítida compreensão de como se desenrola a história da região. Do garimpo de Serra Pelada à construção da ferrovia; do fatiamento brutal do território marabaense ao massacre da ponte sobre o rio Tocantins; das queimadas sem controle à luta pela posse da terra. Mas não percebe em que condições se fez o apontamento desses fatos, quanto de suor e lágrima custou a tantos,ou como se fez também a história pessoal de cada um dos que trabalharam ou trabalham na redação, nem sempre a fluir sem atropelos. Mas aquelas dificuldades tinham uma conseqüência inesperada: juntava-nos na mesma obsessão – fazer circular o jornal. Depois ríamos do choro e do ranger de dentes. Domingos César, então!... Esse tinha uma gaitada escandalosa que dava para ouvir nas pensões do entorno da rodoviária. Havia um tempo um narigudo parecido com Cyrano de Bergerac, o Ivo Fernandes, já falecido, cuja voz de locutor de rádio quase fazia tremer as prateleiras da redação. Miguel Pereira, fotógrafo inesquecível, brutalmente assassinado por um vagabundo, trazia sempre uma informação além das imagens capturadas. É que ele tinha bom ouvido e faro para acontecimentos que em geral culminavam em boas reportagens. Waldyr Silva ia para as ruas e passava o resto do tempo a ouvir e transcrever à mão as entrevistas colhidas com seu gravador do tamanho de um tijolo de oito furos. Só depois dava redação final na máquina datilográfica. Mascarenhas tinha uma maquininha portátil azul que dedilhava com apenas os dois dedos indicadores, compenetrado a catar seu milho de grão em grão. Da gráfica enfim comprada vinha o cheiro de tintas e o tagarelar dos operários. No final de semana juntávamos quase todos – gráficos, repórteres, fotógrafos, pessoal do escritório – e aí sim, banhávamos de cerveja a alma e o coração. Tempos heróicos? Que nada!... Nós todos éramos felizes e sabíamos.

15 comentários:

Anônimo disse...

Caro Ademir:
Parabéns pelo belíssimo texto. É assim que se resgata, no cotidiano, a história de uma região. Continua a remover o teu baú de lembranças, e, com certeza novos fatos que não devem ficar no esquecimento virão ao nosso conhecimento, para deleite intelectual e resgate de fatos que contribuíram para a formação histórica do nosso querido sul do Pará.
abs. do Ronaldo Barata

Anônimo disse...

Querido Ademir,

chegar aqui foi mais rápido do que enfrentar a rotativa do tempo, com a qual você nos desdobra em tantas fibras no post.

A nós, que conhecem, viveram ou vivem em Marabá. Não importa. Importa apenas se sabemos o que é o Inflamável, se conhecemos o conservadorismo do velho Osório, ou a risada do Domingos Cesar. Ou se tomamos um susto ao saber que o boa praça Miguel Pereira foi assassinado!

Mas ainda que não se saiba nada disso, a leitura tem cor e sons. E retratos opacos ou vivos na parede da mamoria. Que fazem a gente lembrar que sempre é bom saber "... quanto de suor e lágrima custou a tantos,ou como se fez também a história pessoal de cada um dos que trabalharam ou trabalham..." nas redações, nos jornais e em yodos os trabalhos onde a mão humana semeia, colhe e transforma.

Um abraço comovido, saudoso e muito apertado.

Anônimo disse...

Que bela história Ademir. Como é bom falar de jornal e jornalistas. Como é bom falar das coisas boas, gostosas, que só quem fez jornal de corpo e alma, como você, sabe contar com tanta precisão.
Fez-me lembrar de outras histórias de redação, também saudosas, daqueles bons tempos, sob a batuta de Claudio Augusto de Sá Leal.
Parabéns, como sempre, pelo texto.
Um forte abraço,

Orly Bezerra

Ademir Braz disse...

Caro Ronaldo: você, a quem admiro muito, honra-me de fato com a leitura desses textos aleatórios. Quaradouro é uma válvula de escape, o balde derramado de Fernando Pessoa, qualquer coisa assim.
Obrigado pela gentileza das palavras.

Ademir Braz disse...

Oi, Bia, a sua generosidade é imensa. Um beijão

Ademir Braz disse...

Caro Orly, como vão as lides? Dia desses me indagava quando poderiamos ler suas memórias sobre os bastidores da política do Estado, escrita por quem sempre militou na publicidade e no jornalismo paraense. Seria um trabalho esclarecedor e deveras interessante.
Há projeto nesse sentido?
Um abraço

Anônimo disse...

Oi Ademir,

Estou, ainda, na fase de transição e - por que não?, de readaptação para um novo tempo de trabalho junto a iniciativa privada, depois de 12 anos de dia-a-dia com a publciidade institucional , via governo do Estado.
Claro que sinto falta daquela época: gostava do que fazia e me envolvia de corpo e alma naquele trabalho: comunicação e política, política e comunicação. Fazia com prazer e nem me dava conta de toda trabalheira.
Foi uma época da minha vida, medida as proporções por motivos óbvios, compatível com a minha primeira fase profissional, nos quase 10 anos vividos na redação de jornal(Folha do Norte, O Liberal e o Estado do Pará) na década de 70 e início de 80. Convivemos juntos alguns desses momentos e você deve lembrar como eram saudáveis, apesar de todas as adversidades que enfrentávamos. Uma redação de verdade é sangue, suor, cerveja. E muita alegria, muito prazer. Lições de vida. Um aprendizado permanente.
Quanto ao desafio proposto, confesso que tenho pensado sim, até por incentivo de outros amigos. Estou dando tempo ao tempo, talvez a espera de uma melhor oportunidade.
Quem sabe se na próxima vez que eu for a Marabá, ou você vier a Belém, não possamos sentar em torno de uma mesa para uma boa prosa, na companhia de uma bem gelada pra refrescar as idéias e matar a saudade?

Um forte abraço,

Orly Bezerra

Anônimo disse...

ak diz:
Ademir: postei no blog do Juca dizendo que um texto bom é um texto bom em qualquer mídia.
Digo agora diretamente,o que já deveria ter feito.
Quanto á proposta pro Orly, endosso completamente.
Além do que tem pra contar, o texto dele é bom.
Histórias e textos são ótimos.
Grande abraço,
Afonso Klautau

Anônimo disse...

Caro Ademir:
Que tal enfrentares a tarefa de escrever sobre a historia política de Marabá,atraves de relatos simples e gostosos como são o de tua lavra. Não há necessidade de nenhum tratado, Os fatos que com certeza tens na memória, por si só seriam capazes de desenhar o painel dos últimos 20 anos, que foram importantes para que se possa compreender as mudanças e transformações que Marabá sofreu, e seus reflexos no restante da região.
De minha parte, pretendo registrar um pouco do que foi a época conturbada dos conflitos pela posse da terra - que não foram poucos - e o que eles significaram para a derrocada dos senhores ¨feudais¨ , donos dos caminhos políticos desta região.
Um forte abraço do Ronaldo

Unknown disse...

Demir, se este seu admirador de tão distantes plagas puder lhe fazer um pedido, gostaria de ouvi-lo sobre a decisão da dra. Pissolati sobre o afastamento do prefeito Tião Miranda, e da procedência das teses arguidas pela defesa.
Receba um grande abraço!

Seu,

Carlos Mendes disse...

Meu querido Ademir. Que bom ler o que você escreveu. Me fez recordar de uma boa fase de minha vida que, embora cheia de dificuldades financeiras, como sempre, foi muito rica de esforço profissional. Quando é que vamos nos encontrar em Belém para tomar uns gorós e relembrar outros fatos daqueles tempos? Um abração do
Carlos Mendes

Ademir Braz disse...

Grande Carlos Mendes! Você fez história no jornalismo por aqui e é sempre agradável reiterar a importância desse trabalho, numa época de muito vigor e igual amadorismo. Você é uma lenda no Correio do Tocantins, esta é a verdade.
Há tempos não vou à boa terra e isso me deixa nostálgico. Já fiz planos, muitos planos mas na hora H tem sempre uma coisa pondo tudo a perder, e o tempo vai indo. Em 2006 fiquei meia hora retido no aeroporto, sonhando em ir tomar pelo menos uma, aí não pude sair do avião porque embarcaram os parceiros de viagem para Macapá (ainda doce e poética com a Belém dos anos 60).
Você ainda está nas redações? Certamente. É o espaço vital, ainda, apesar de tudo, apesar da pasteurização dos press-releases.
Vamos ver como a gente toma umas la nas Docas, que até nem conheço mais...

Ademir Braz disse...

Prezado AK, veja aí a resposta do próprio Orly. Acho que com mais uns cutucões ele conta tudo rsrsrs

Ademir Braz disse...

Dr. Ronaldo:
E não é que estou desde ano passado juntando material para uns relatos dos bastidores políticos desde que começou, aqui, em 1972, a "geração dos pro-tempore" que em regra só nos deu prejuizos?
A proposta é cobrir pelo menos as décadas que acompanhei bem de perto,ocasionalmente registrei e até participei como testemunha ou agente incidental. Não é, claro, tratado político, mas impressões pessoais sob um período em que nós, atarantados como todas as cobaias, vimos os mega-projetos destroçarem 1,5 milhão de hectares de castanhais a pretexto de mudança da base produtiva, além de outros efeitos como a transformação de terras devolutas em latifúndios instituídos a sobrevôo etc.
Até pedi o apoio da nossa Adelina, com quem trabalhei no serviço público e convivi no particular, cujas memórias também gostaria de ver publicadas porque certamente já estão escritas, né?
O problema é a disponibilidade do tempo para quem vive o cotidiano da sobrevivência imediata, pontual, diária, sem fonte de recurso assegurado ao final do mês. Mas, vamos ver o que pode ser feito, mesmo assim, sem qualquer regularidade.
Um abraço

Ademir Braz disse...

Prof. Juvêncio:
"A síndrome de Tião - Fase 2" acontece num período em que estou há duas semanas arriado com virose e mal a tenho acompanhado pelo relato cheio de dedos da imprensa local. Logo, ainda vou apurar.
Mas lhe digo que a denúncia oferecida pelos promotores públicos quanto à improbidade administrativa tem fundamento (e no Correio do Tocantins de hoje, 31.01- o prefeito reitera que não mudará nada ao reassumir)e a juíza Audecy Pissolatti é muito criteriosa.
Achei, digamos, curiosa foi a defesa apresentada na terça ao Correio do Tocantins pela defesa de Tião, de que seu afastamento causaria abalo na administração municipal. Como? Abalo mais forte do que a má aplicação de dinheiro público? E para que serve o vice-prefeito em caso de afastamento do titular?