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sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

O cacho verde e ácido do murici

Acompanhei meu filho à Marabá Pioneira na manhã de domingo, onde ele foi fazer prova do programa chamado Prise, para mim uma vaga noção de que se relaciona com o vestibular, concurso para ele previsto lá para 2010, nos seus 17 anos. Enquanto ele ficou numa escola pública, entre centenas de outros adolescentes, fui andar nas ruas da cidade que me viu nascer e abrigou até que o mundo fez de mim seu parceiro e aprendiz. Hoje, aquela porção de terra e saudades entre os dois rios não é mais uma cidade – tornou-se apenas bairro, pequena porção de um espaço desvairado, cambaleante e distendido, ao longo de quatro décadas, em todas as direções, cada qual com perfil, rotina e linguajar em construção. Ando um pouco pela orla, depois pela avenida central, ambas àquela hora vazias. Rói-me o estômago e não há lugar algum onde se possa tomar um desjejum. Na padaria adiante, apontada pela amiga, moscas enormes pousam em toda parte, falta gelo para o suco de laranja, o pão azeda na boca. De volta à rua, sinto-me um dinossauro a vagar pela floresta coberta de cinzas e odores vulcânicos de esgoto. Nós, marabaenses da antiqüíssima guarda, com mais de 55 anos, do tempo da castanha e do Capitariquara, somos raça em extinção. Entro no estadiozinho e suas histórias me assediam. Olho enfarado o maltrato imposto à bola pelas equipes e afasto com um sacudir de cabeça a lembrança dos craques que jogaram comigo num campo cercado, em parte, de quintais separados por estacas e, de outra, fechado por uma ponte de madeira e patas de cimento fincadas sobre o pântano entre duas ruas. Saio sem olhar para trás. Viro a primeira esquina à esquerda e desço a Rua Nova até à ilharga do Cabelo Seco, por trás. Lá, nos fundos, homens e máquinas retomam ao Itacaiúnas uma parte levada pelas águas do que fora o mais estupendo e insuspeito muricizal a espraiar-se depois da cadeia de São Luis. Nessa planície desolada e nua, de barro e pedra de fogo amontoados, onde apenas um trabalhador me observa da casa de madeira sob o domingo cinzento, de repente pareço ouvir na paisagem enverdecida o grunhido dos porcos criados por João Pernambuco, Severino Mãozinha e outros que os castravam e cevaram e depois os cortavam a machete sobre cepos de madeira no mercado municipal. Os porcos vinham de longe, desde a longínqua e maranhense Carolina em balsas de buriti, Tocantins abaixo dias e dias. No muricizal, quando meninos, subíamos nas árvores baixas com seus cachos verdes e ácidos e saltávamos sobre o capado erradio. Agarrados a seus pêlos e orelhas íamos aos trancos, vaqueiros sobre doidas montarias, entre galhos e guinchos, risos e ossos quase partidos nos troncos, até onde nos levassem a traquinagem e o equilíbrio. Dou-me a rir sozinho à margem turva do rio. Dizem que ali, na chapada enlameada pelo inverno, serão construídas casas para alojar os que moram em casebres mais adiante. Duvido que os filhos dos antigos do meu tempo se lembrem ao menos de plantar um muricizeiro em seu futuro quintal.

7 comentários:

Anônimo disse...

Olá, bom dia!
Parabéns, pelo texto. Muito bom mesmo.
Vamos publicá-lo no jornal O REGIONAL.
WWW.oregionalonline.com.br.

Um grande abraço!

Ademir Braz disse...

Oi, Lady K, como vai? Você desapareceu por longo tempo!...
Obrigado pela colher de chá! A crônica foi inserida no inédito "Crônicas insensatas & Outras malvadezas", que será publicado não sei quando.

Anônimo disse...

Ademir,
Mais uma crônica de responsa.
Me transferí para dentro de sua narrativa.
Sobre maltratar a bola, me lembrei do Eduardinho, do Ivenica, do Leônidas e não pude deixar de pensar que aqueles tempos eram mesmo dourados,a bola era amada por esses craques.
Quanto aos muricizeiros, hoje só no sítio do seu Domingos ou na UFPA, talvez nem lá.Santa Rosa nem pensar.
Um abraço!
Nilson.

Anônimo disse...

Querido Poeta,

não serão plantados os muricizeiros. Nem renascerá a memória dos lugares, essa que você guarda no peito. E vamos lá à canção do Chico e do Sergio Godinho:

"...as nossas sobrevidas
vidas, vidas a se encantar,
a se combinar
em vidas futuras

E vão tomando porres
Porres, porres
Morrem de rir
Mas morrem de rir
Naquelas alturas
Pois sabem que não volta jamais
Um tempo que passou"


Abração.

Ademir Braz disse...

Nilson, mano velho, por onde você anda? Estamos, eu e alguns poucos, tentando criar uma associação constituidas principalmente por marabaenses (ou não)ligados à nossa terra e preocupados em intervir no destino que lhe está sendo armado fora dela, mas não distante da nossa possibilidade de influenciar alguma coisa.
manda endereço e e-mail, fone, pra gente conversar. Como dizia Virginia Mattos, em 1986, ou a gente se Raoni ou a gente se Sting.

Ademir Braz disse...

Bia, amada:
da minha parte plantei, em casa, um pé de tamarino, um de oiti, duas mangueiras, um pé de carambola, outro de cajueiro, um pé de pimenta-do-reino. Por falta de espaço, temos na casa de um irmão pelo menos dois muricizeiros (que não consegui de jeito nenhum emplacar muda em casa, talvez por excesso de sombra).
Como disse o cínico Marc Faber (vou meter a história na página de sábado, tanto que adorei!)"tô fazendo minha parte". rsrsrsrsrs

Dr. Valdinar Monteiro de Souza disse...

Mano velho, essa crônica merece nota 10 com louvor! É, sem dúvida, uma página memorável. Parabéns!
Coisas como essa merecem figurar em livro nas melhoras editoras do país. Pena que o povo da terra ainda não reconheça, meu irmão!
Ainda bem que a rede mundial de computadores veio para permitir que sejam vistas e lidas por pessoas do mundo inteiro. O reconhecimento virá, portanto. Saibamos esperá-lo, trabalhando por ele.
Um abraço fraterno. Feliz Natal!