Por Lúcio Flávio Pinto | Cartas da Amazônia
Os ônibus se tornaram o principal alvo de protesto,
vandalismo e criminalidade nas grandes cidades brasileiras. Em cada uma há
centenas ou milhares deles, transportando milhares ou milhões de pessoas todos
os dias. Os ônibus são invadidos quase que diariamente por algum motivo – e
sempre com grande repercussão, por sua dimensão social. Mas em nenhum episódio
a ação foi tão cruel quanto no início deste ano em São Luís do Maranhão.
Como em outras ocasiões, quatro ônibus foram incendiados,
cota até discreta para o padrão nacional, ferindo gravemente cinco pessoas e
causando uma morte. Os homens que entraram armados num dos ônibus não se
limitaram ao veículo: jogaram a gasolina sobre pessoas e atearam fogo, com o
propósito deliberado de matar.
A menina Ana Clara Sousa, de 6 anos, morreu com 95% do seu
corpo queimado. Sua mãe, Juliane, de 22 anos, que sofre de depressão, pediu aos
invasores que poupassem a criança. Não conseguiu e também foi atacada. Ficou
com 40% do corpo queimado. O entregador de frango Márcio Nunes, que tentou
salvar a menina, teve 72% do corpo queimado, principalmente no rosto. Como
Juliane, foi hospitalizado, em estado grave.
O ataque ao ônibus aconteceu no bairro Vila Sarney Filho.
Zezinho, como é mais conhecido o personagem, é filho do ex-presidente da
república, ex-presidente do senado e ainda – e sempre – senador José Sarney.
Zezinho se elegeu deputado federal sete vezes (mesmo número do pai no Senado).
É irmão da governadora Roseana Sarney. Os nomes Sarney se espalham por vias
públicas, prédios, bairros. Só em escolas estaduais e municipais, são 161 homenagens
ao clã.
Há mais de meio século a família domina o Maranhão, o Estado
mais atrasado do Brasil. Já era atrasado, mas ficou pior relativamente sob a
mais bem sucedida das oligarquias regionais do país. Dos 15 municípios
brasileiros com as menores rendas, 10 são maranhenses.
Em 1965, quando era da “ala jovem” da UDN, com pretensões
modernizadoras, Sarney assumiu o governo pela primeira vez, pondo fim ao
predomínio do grupo do “coronel” Victorino Freire. Desde então, a família
venceu 10 eleições para o governo, ao longo de 41 anos. Mesmo com o
deslocamento para o Amapá, onde conseguiu duas eleições de senador, Sarney
continuou a dar as cartas. Sua filha foi derrotada apenas em duas ocasiões:
quando José Reinaldo Tavares traiu o grupo e rompeu com os Sarney, em 2004, e
quando Jackson Lago venceu Roseana, que concorria ao terceiro mandato de
governadora, dois anos depois. Lago ficou no cargo por menos de dois anos: a
justiça cassou o seu mandato por compra de votos.
A coincidência do ataque ao ônibus acontecer num bairro com
o nome dos Sarney é exemplar da degradação moral, mais do que econômica, do
Maranhão. A lei proíbe que pessoas vivas tenham seus nomes em prédios públicos.
A lei é desrespeitada em todo Brasil, mas com requintes de abuso no Maranhão. A
violência que, nos últimos meses, nascida numa suposta penitenciária de
segurança máxima, a de Pedrinhas, atraiu as atenções nacionais e internacionais
para o Estado, escancarou o nepotismo desbragado.
O relaxamento das regras elementares de conduta na vida
coletiva e de normas legais, como o veto ao culto de personalidades vivas, foi
adotado à larga nesse estabelecimento prisional. Deu causa a 62 homicídios
cometidos em seu interior no ano passado, incluindo três decapitações (filmadas
pelos próprios carrascos) e esquartejamento nas execuções bárbaras. Essa
espantosa sucessão de crimes talvez tivesse continuado sua rotina local se não
provocasse intervenções externas, inclusive da Organização dos Estados
Americanos.
Algumas medidas corretivas adotadas para controlar os grupos
rivais que travavam uma guerra sangrenta no presídio foi o suficiente para que
essas quadrilhas se sentissem autorizadas a retaliar fora dos muros prisionais.
Daí os ataques aos ônibus e a imolação dos seus passageiros, que em ocasiões
semelhantes, em outros lugares, foram poupados da agressão.
É evidente a insensibilidade, a incompetência e até mesmo a
conivência do governo de Roseana Sarney com os miasmas que afligem o seu
Estado. Dela e do pai. Ambos levitam em outro planeta, não no Maranhão. A
imprensa flagrou concorrência pública de um milhão de reais do governo para a
compra de comidas e bebidas finas para o Palácio dos Leões e suas extensões ao
longo deste ano. Incluindo lagosta e camarão, mas também um suspeito
“refrigerante rosado”, contendo “água gaseificada, açúcar e extrato de
guaraná”, que outro não é senão o refrigerante Jesus, único no Brasil, por sua
singularidade, descrita no edital, e gosto extravagante. Ação entre amigos, até
na cozinha palaciana?
Não há uma relação de causa e efeito entre o domínio
autocrático da família Sarney sobre a política maranhense e todos os
acontecimentos ruins e as marcas negativas que o Estado exibe. Não há dúvida,
porém, que a manutenção dessa estrutura nociva, ao longo de tantos anos, deve
ser creditada ao clã liderado pelo eterno senador.
Com a sua maneira impermeável de se livrar de
responsabilidades, o “padrinho” deve se sentir injustiçado diante da acusação.
Afinal, São Luís cresceu e melhorou, como insistiu a filha em destacar. O
Maranhão recebeu novos investimentos, sua economia voltou a se diversificar.
Mas esse crescimento não teve a devida tradução social, não se transformou em
riqueza e progresso para os maranhenses – para mais maranhenses do que uma
elite indiferente ao paradoxo da pobreza em expansão paralelamente a grandes
investimentos, em geral favorecidos pelo Estado.
Da mesma maneira como a lei é supinamente ignorada, quando
interessa aos donos do poder, os benefícios são desviados para poucos bolsos,
num circuito clandestino que só emerge quando ocorre um acidente, como quando
uma operação da Polícia Federal flagrou uma montanha de dinheiro vivo (1,2
milhão de reais) para o fundo de campanha de Roseana para a presidência da
república. O contraste entre a grandeza potencial e seu efeito concreto é, ele
próprio, um instrumento da sobrevivência desse esquema de poder. Tem direito a
participar do butim quem se incorpora ao grupo dominante.
Por isso, os Sarney são responsáveis tanto por aquilo que
deram causa direta como pelo que resulta dessa concentração patrimonial e
política, que se legitima com os suspiros literários do vate senatorial. Os
trágicos acontecimentos dos últimos dias podem acabar com essa sucessão de
linhagem, se a onda de indignação superar as conveniências políticas de São
Luís e de Brasília. Conforme se sabe, Roseana é do PMDB, como o pai, e o PMDB é
da base de sustentação do governo do PT. O mais importante partido dessa
coligação.
Uma péssima moral da história foi permitir que Josef Stálin,
um dos líderes mais selvagens que já apareceu no mundo moderno, morresse de
causa natural em seu leito, em Moscou. Nenhum Sarney tem a menor semelhança com
o czar soviético, mas também não faz boa moral que seu reinado sobreviva às negras
purgações impostas ao Maranhão neste meio século e nestes últimos dias. Se essa
oligarquia, a mais bem sucedida de todas, chegar ao fim, quantas não a
seguirão, para o bem do Brasil?
Um comentário:
Pagão,
Esse Lúcio escreve bem pra caracas. Agora, tem um santareno, amigo de Lucio, o que escreve Honoráveis Bandidos, de Palmério Dora, que foi um dos primeiros a encostar essa oligarquia na parede que força o povo do Maranhão a se mudar para cá, em busca de oportunidades.A capa do livro é emblemática, aparece Sarney de óculos raibãs escuros, como um grande mafioso. Leiam, rápido.
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