quarta-feira, 28 de março de 2007
Nós, pardais
Pedro Marinho de Oliveira era prefeito quando recebeu a visita de um grupo de ornitólogos. Eles explicaram que estudavam pássaros e há anos acompanhavam a migração de pardais, do sul para o extremo norte pelo centro do país, desde que a prefeitura de Porto Alegre iniciara a matança dessas aves. Alegou-se, como pretexto para o extermínio, que por serem gregários e de convívio fácil com os humanos, os pardais ocupavam a cidade e expulsavam as outras aves. Era 1966 e Pedro Marinho saiu do gabinete e foi com os estudiosos ver os pardais que há tempos nidificavam no beiral da Casa Salomão, atrás da prefeitura e defronte à Fundação Sesp.
Trinta e tantos anos após, Marabá vive cheia de pardais. E de sanhaçus, bem-te-vis, andorinhas, cambaxirras, coleirinhas, desmentindo a história que pardais saqueavam-lhes os ninhos e bicavam seus ovos. Até os gaviões-tesoura voltaram, como voltaram as amargosas à praia do Tucunaré, assinaladas pela primeira vez em 1750 quando franceses e italianos fizeram do Tocantins seu caminho para a França Equinocial, como então era conhecida a Província de São Luís do Maranhão. Então nossa ilha chamava-se “Praia das Pombas” justamente por causa das amargosas – umas jurutis enormes que, quando voam, fazem nas asas um farfalhar que se leva para sempre como secreta nostalgia no coração. Emigradas do inverno nos Estados Unidos, aqui vinham acasalar e reproduzir-se. Eram então mortas aos bandos e comidas como tira-gosto de aguardente.
No início dos anos 80, morava eu em Santa Isabel do Pará, cidadezinha agradável a 40 km de Belém - e da qual sou, com inocultável orgulho, cidadão honorável por decisão da Câmara e do Executivo -, quando observei com alegre espanto bandos de pardais no paço e na torre da matriz. Eu também era um imigrante e seu canto miúdo e nervoso me lembrava a terra dos meus irmãos. Pois esse mesmo sentimento remoto e bom acolheu-me repentinamente em certo abril na cidade de Carajás, sudeste do Pará, 650 metros acima do nível oceânico, onde solitário e angustiado bebia cerveja numa churrascaria: a praça estava cheia de pardais e curumins caiapós que brincavam sob o olhar vigilante das cunhãs e a dissimulada indiferença dos garçons. Eu filosofava que nós - marabaenses erráticos (que vivemos por aí porque nos impedem de viver e trabalhar na terra que amamos); nós, os pardais perseguidos; nós, as amargosas raras e os curumins inquietos e vigiados - seremos, até o último dia de nossas vidas, uma raça à parte, incapaz de assimilar e conviver com um mundo hostil que exclui e condena, que afasta e renega aqueles cuja sensibilidade flui e reúne no mesmo universo a sonoridade do ar, o acalanto da terra, a ruidosa servidão das chamas e o largo e acolhedor ventre das águas. (Ademir Braz)
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