sexta-feira, 23 de maio de 2008
Ao largo
Ademir Braz
Para Charles Trocate, no seu caminho)
Já não te amo mais, cidade minha.
Quando, nas dobras da minha lembrança,
tange solitário um tropeiro a tropa
ruidosa dos meus desenganos,
sinto que não te amo mais, cidade minha.
Assim, desgosta-me o suor-nectar que exalas
por entre as pernas, se me enlaças e roças
no rosto teus seios imaturos de vestal.
Assim, trinco os dentes se me acenas doce,
etérea e sedutora, dentre as aves de rapina
que se fartam em tuas entranhas.
Já não te amo mais.
Um gigantesco mar nos põe ao largo
e singro, em velames, a esquecer teu cais.
Aborrecem-me tuas ruas ensolaradas
ou noturnamente desertas e melancólicas.
Ralam-me o cristal das chuvas de dezembro
e o odor de frutas claras na água de verão.
Se navego teus rios, ouço vozes afogadas
de crianças e o canto deslembrado de pássaros;
vejo encantarias apanhadas em tarrafas
e garimpeiros presos ao farracho de sonhos
cravejado de diamante e turmalinas;
ouço adiante o canto sombrio da aldeã ilhada
em balsa de buritis a descer sem timoneiro
a voraz correnteza da memória, e o estrondo
infindo de um avião a retorcer-se em chamas,
facho imenso aceso sobre águas negras,
farândola insana para um deus insano.
Sinto-os ainda, e tanto!, cidade minha... Já,
em tuas ruas não anda mais a triste e doida
Zabelona a cavalgar ao luar sua porca de bobs,
nem sobre as casas ressoa, pela madrugada,
o agourento presságio do rasga-mortalha.
Invés, na calha dura avulta a gosma rubra
de teus pobres, catados à margem de trilhos
e soltos na veia líquida de março. São pobres
peixes tangidos da sombra insalubre dos brejais.
Sujos de ferrugem e fuligem, vomita-os o dragão
chinês na gare de abandonos na periferia.
São lambaris que no mormaço vagam. Cegos, vagam.
Famintos, comem o paul do paiol apodrecido.
Para onde irão a seguir (além da cerca do latifúndio
e da cova anônima de indigentes sem luto)?
(Abril, 2008)
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