Processo inconstitucional é nulo de pleno direito
O Pará vive dias de perplexidade. Tristemente famoso pela alcunha de “terra sem lei” mundo afora, é palco de graves violações dos direitos humanos e de cidadania, e dos princípios insculpidos na Constituição Federal, na lei processual e nos códigos de ética.
Palco sangrento de grilagem e pistolagem, com a conivência de cartórios e órgãos públicos que deveriam implementar e zelar pela reforma agrária, em 2006 a grita foi tamanha que o próprio Tribunal de Justiça do Estado do Pará criou uma comissão exclusiva para tratar de crimes fundiários, além de Ouvidoria específica, e participou ativamente da Comissão Permanente de Monitoramento, Estudo e Assessoramento das Questões Ligadas à Grilagem no Pará, integrada pelo TJE-PA, Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual, Instituto de Terras do Pará, Advocacia-Geral da União, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Comissão Pastoral da Terra da CNBB, Ordem dos Advogados do Brasil, Procuradoria-Geral do Estado e Federação dos Trabalhadores na Agricultura.
Depois de três anos cruzando informações, em 2009 a comissão constatou irregularidades em mais de 5 mil títulos de terra registrados nos cartórios estaduais, que somavam extensão maior que 110 milhões de hectares, quase o dobro do território paraense. Em setembro de 2009, o então Corregedor Nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp, determinou o cancelamento do registro imobiliário de área superior a 410 milhões de hectares, o equivalente à metade de todo o território brasileiro, só na Comarca de Altamira, depois de inspeção nos cartórios locais e em Vitória do Xingu.
A magnitude das fraudes levou a comissão a pedir à Corregedoria do Interior do TJE-PA que fossem cancelados administrativamente todos os títulos irregulares, já bloqueados por medida do próprio Tribunal. Mas a desembargadora Maria Rita Lima Xavier, à época corregedora do interior, negou a solicitação, o que levou o caso ao CNJ, que, em agosto de 2010, ordenou o cancelamento de todos os registros imobiliários e matrículas considerados irregulares no Pará, e imediato comunicado às instituições de crédito oficiais, ao TCE-PA, aos órgãos fundiários do Estado e da União e ao MPF e MPE, a fim de que processassem criminalmente os envolvidos.
A medida histórica - reafirmou decisão do STF da década de 1970 que, partindo do pressuposto de que as terras são originariamente públicas, definiu que é o particular quem tem que provar que recebeu do poder público o documento da terra -, poderia ter sido o início do fim da grilagem no Pará.
Mas não foi assim. Tanto que o jornalista Lúcio Flávio Pinto, que sempre se destacou em matérias corajosas e irretocáveis acerca da questão fundiária, ao se referir, em seu “Jornal Pessoal”, ao latifundiário Cecílio do Rego Almeida como “pirata fundiário”, foi por ele processado e pelo TJE-PA condenado por injúria, calúnia e difamação, numa sucessão de atos kafkianos inacreditáveis para quem não vivencia o cotidiano desta terra onde prevalece a lei do mais forte, traduzida na violência e na impunidade.
O juiz Amílcar Guimarães, em meteórica assunção à Vara competente, sem nunca ter visto o volumoso processo e em meio aos muitos que abarrotam suas prateleiras, tomou exatamente o de Lúcio Flávio, numa sexta-feira, devolvendo-o sentenciado na terça-feira seguinte, quando já nem estava mais designado para as funções, condenando o jornalista, e datou a sentença retroativamente, como atestam o registro no computador da Secretaria da Vara e o próprio diretor da Secretaria. Mais: o processo estava suspenso até que fosse decidido Agravo impetrado à segunda instância, portanto não poderia haver sentença antes da manifestação superior. Pior: o próprio magistrado anunciou publicamente sua animosidade contra o jornalista, o que por si só o impediria de despachar nos autos. Lúcio requereu à Corregedoria de Justiça instauração de inquérito contra o juiz. A relatora, desembargadora Carmencim Cavalcante, acolheu seu pedido, mas o Conselho da Magistratura o rejeitou.
Lúcio Flávio Pinto bradou ao vento tais ilegalidades; contudo, a sentença foi mantida, com o voto decisivo da desembargadora Nadja Guimarães Nascimento, esposa do procurador de justiça e ex-secretário especial de Estado de Defesa e de Segurança Pública, Manoel Santino Nascimento, a quem Lúcio Flávio criticou duramente em diversas reportagens por ter enviado tropa da PM para dar cobertura a afirmação de posse de Cecílio do Rego Almeida sobre área grilada – fato que deveria ter inspirado, no mínimo, a abstenção da magistrada em tal julgamento.
No dia 7 de fevereiro deste ano o presidente do Superior Tribunal de Justiça, ministro Ari Pargendler, negou seguimento ao recurso especial interposto contra a decisão do TJE-PA, por meras formalidades processuais. Lúcio Flávio, compreensivelmente descrente da aplicação da Justiça, desistiu de novos recursos e resolveu mobilizar a sociedade não só para o seu caso, mas para a causa, que é muito maior, e que tem ceifado vidas como as dos ex-deputados Paulo Fontelles de Lima, João Carlos Batista e a missionária Dorothy Stang, além de inúmeros lavradores, ambientalistas e advogados, manchando de sangue as terras parauaras numa hecatombe anunciada e ignorada por aqueles que podem e devem agir para evitá-la.
Recentemente, o juiz Amílcar Guimarães postou no Facebook textos ofensivos a Lúcio Flávio Pinto, em que reafirma sua motivação pessoal, revela apologia à violência e apregoa sua descrença no Judiciário que integra. Chama o jornalista de “Irmã Dorothy da imprensa paraense”. O que quer dizer? Que a morte de Lúcio se avizinha?! Não satisfeito, zomba de possíveis providências do CNJ, alardeando que, no máximo, será aposentado, o que é seu desejo.
O procurador da República Felício Pontes Jr., representante do MPF na comissão de combate à grilagem, entregou ontem à noite, no auditório da Justiça Federal, em meio a Ato Público, os autos de processo contendo todas as provas de que tudo aquilo dito por Lúcio Flávio Pinto em relação a Cecílio do Rego Almeida é verdade.
Temos a responsabilidade, todos nós, paraenses que prezamos a honra, a dignidade, a cidadania, o Estado Democrático de Direito, de exigir e fazer valer a Justiça. Esse processo contra Lúcio Flávio Pinto pode e deve ser nulo de pleno direito, pelo vício de origem de que foi fartamente contaminado, descrito à exaustão em seus próprios autos.
O ato inconstitucional é nulo de pleno direito e, portanto, não produz efeitos jurídicos, tem eficácia ex tunc (desde então), e retroage no tempo até sua origem, cujos efeitos devem ser desfeitos, se não em si mesmos, no mínimo mediante indenizações, compensações e outras reparações juridicamente admissíveis. É o caso aplicável ao processo de Lúcio Flávio Pinto. Que a OAB-PA e a OAB nacional – esta dirigida por um paraense -, e que tem primado pela omissão, cumpra o dever de agir, eis que o advogado é privilegiado constitucionalmente como indispensável à aplicação da Justiça.
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