Por Gabriel Manzano, Observatório
da Imprensa
Mata!, o Major Curió e as guerrilhas no Araguaia, de Leonencio
Nossa, 496 pp., Editora Companhia das Letras, São Paulo, 2012 # reproduzido do
Estado de S.Paulo, 10/6/2012
Para o soldado Cid, foi um ato banal. “Pisei em seu braço,
impedindo que levantasse a arma, e perguntei: 'Qual o seu nome?' Com ar de
deboche e ódio, respondeu aos gritos: 'Guerrilheira não tem nome'. Eu e João
Pedro a metralhamos.”
Assim morreu, em 24 de outubro de 1974, numa obscura grota
na selva, ao norte de Goiás, a militante do PC do B Lúcia Maria de Souza, ou
Sônia, capturada pelo grupo do major Sebastião Curió – o homem que o regime
militar havia encarregado de liquidar sumariamente a Guerrilha do Araguaia.
Sônia, Raul, Osvaldão, Arildo, Grabois, Áurea, Queixada, as
duas Dinas... Os momentos finais de todos eles foram semelhantes. O registro de
tudo, pelo próprio major, ficou por mais de 30 anos no fundo de uma mala
vermelha guardada em um porão. Pelas mãos do jornalista Leonencio Nossa,
repórter especial da Agência Estado em Brasília, esse precioso pacote de
memórias está virando livro. Editado pela Companhia das Letras, Mata!
– O Major Curió e as Guerrilhas no Araguaia chega terça-feira às
livrarias e deixa mais rica a bibliografia da recente história do Brasil. Em
512 páginas, que incluem um caderno central com fotos cuidadosamente guardadas
por Curió, vêm à luz as caminhadas finais, pela selva, da Operação Marajoara –
a ação militar que entre 1972 e 1975 acabou com a brevíssima aventura da luta
armada do PC do B no fundão de Goiás.
A tarefa exigiu paciência, determinação, talento. Leonencio
rodeou o assunto e o major durante longos anos. Vasculhou 32 pastas, um pacote
de mapas, seis álbuns de fotos e muitos papéis soltos que o xerifão das selvas,
hoje tenente-coronel reformado, guardava para escrever, ele próprio, o seu
livro – cujo título seria A Selva do Araguaia.
“Meu desejo é que a narrativa agrade. É importante que isso
seja conhecido, esclarecido”, afirma o autor, que antecipou no Estado boa parte
desse material em uma série de reportagens em junho de 2009.
Cor local
Fato marcante dos anos 70, a aventura armada no Araguaia tem
sido objeto de muitos outros autores, mas o que surpreende em Mata! é o
testemunho direto dos episódios – o que só as memórias de Curió tornariam
possível. Breves capítulos vão despejando, aos poucos, a cansativa caminhada,
as conversas, o dia, a hora, o lugar, o ataque, o grito, a fuga, o tiro. O
cerco e a liquidação dos inimigos, já exaustos e sem recursos. O resultado,
para a história, é uma correção atrás da outra de muitos relatórios – falsos –
que o regime divulgou sobre quem morreu, onde e como. Não há grandes surpresas
sobre o destino dos corpos.
Mas sabe-se, por exemplo, que foram 41 e não 25 os fugitivos
que, já detidos, foram executados quando não ofereciam mais risco. Que Paulo
Roberto Marques, o Amauri, não morreu no cerco à cúpula da guerrilha no Natal
de 1973, mas fugiu e dias depois se entregou. “Entrou num helicóptero com as
mãos amarradas. Foi fuzilado perto do Rio Saranzal”, anunciam os papéis de
Curió. Que Dinalva Oliveira Teixeira, a Dina, não caiu em combate, mas morreu
na cadeia de Marabá em 26 de junho de 1974.
Serra Pelada
Na segunda metade do livro vem à tona outra grande aventura
de Curió: os seus turbulentos anos no comando de Serra Pelada. Uma saga de
garimpeiros esfarrapados e prostitutas valentonas, gente que ele defendia e
manipulava numa área maior que Inglaterra, Irlanda e Gales juntos.
Passados 38 anos da aventura, o tenente-coronel aposentado
confessa ao repórter sua nostalgia. “Em Serra Pelada eram dois objetivos:
extrair o ouro para encher o cofre do Banco Central e continuar o trabalho
político. Não via o tempo passar. Hoje qual é meu rumo? Para onde eu vou?
Araguaia foi uma guerra, nunca esqueça.” E bate na sua tecla preferida: “Se não
houvesse determinação e pulso forte na erradicação da guerrilha, teríamos até
hoje um movimento semelhante às Farc.”
***
“Fracasso na selva
sepultou radicalismo”
Na longa lista de revoltas contra o poder, no Brasil, a
aventura do PC do B no Araguaia não teve grande expressão, mas seu saldo
político foi importante, avalia o historiador Pedro Paulo Rufino, titular do
Departamento de História da Unicamp. “Enquanto a luta armada fracassava no
campo, entre 1972 e 1975, o MDB conquistava o eleitorado, intelectuais faziam
pesquisas no Cebrap, o jornal Movimento desafiava a censura”, recorda ele. “A
derrota da luta armada sinalizou que o diálogo político era a única saída. A
ele o regime militar não conseguiu sobreviver.”
Qual o balanço, hoje,
dos episódios no Araguaia? Como explicar o surgimento da guerrilha?
Pedro Paulo Rufino – Esse fenômeno toma corpo num cenário
específico, o da guerra fria pós-1945. O mundo polarizado entre dois lados,
guerrilhas chegando ao poder na Coreia, no Vietnã, na Argélia, em Cuba, Nas
vizinhanças, grupos fortes como Montoneros, Tupamaros, Sendero Luminoso. Os
radicais do PC do B imaginavam que a guerrilha poderia também vencer por aqui.
Para alguns, acabou
justificando mais radicalização do regime.
P.P.R. – Num cenário de confronto, classes altas e médias
sentiam-se ameaçadas e a direita fortaleceu o discurso. Mas havia vozes
discordantes. O velho Partidão aliou-se à oposição moderada.
A guerrilha perdeu,
mas a ditadura também entrou em declínio.
P.P.R. – Temos de ver o conjunto. O período de 1972 a 1974 é
crucial. Em 1972 a repressão ainda corria solta, mas em 1973 a crise do
petróleo abalou os pilares e as certezas do regime militar. Em 1974, o MDB
crescia nas urnas, a Igreja reforçava campanhas por abertura democrática. Até
radicais do PC do B aceitaram a via eleitoral. O fracasso na selva sepultou o
radicalismo.
Passadas mais de três
décadas, o que ficou da aventura?
P.P.R. – O episódio foi pequeno, mas seu subproduto, o saldo
político, foi muito importante. Enquanto a luta armada fracassava no campo,
entre 1972 e 1975, o MDB conquistava o eleitorado, intelectuais como Fernando
Henrique Cardoso faziam pesquisas no Cebrap. O jornal Movimento desafiava a
censura, arrumavam-se as bases para a ascensão dos sindicatos. O fracasso da
luta armada mostrou que o caminho era o diálogo político. A este o regime não
conseguiu sobreviver.
Como o sr. vê a
orientação dos militares para matar mesmo presos indefesos?
P.P.R. – À parte os julgamentos morais, é preciso entender
que para o Exército era uma guerra e a lógica da guerra é eliminar o inimigo
para evitar riscos. A França matou cerca de 1 milhão de pessoas na Argélia. Há
alguns dias, mataram o segundo homem da cúpula da Al-Qaeda. Ninguém cobrou que
ele fosse levado vivo para julgamento.
***
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