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terça-feira, 15 de maio de 2007

Razões do coração

Mãe Ana Valente passava o dia inteiro no trabalho. Na beira do rio, desde as horas primeiras da manhã – quando o Itacaiúnas ainda cochilava envolto num lençol de brumas – afundava-se ela entre as trouxas de roupas alheias, que as fazia alvas e cheirosas no quaradouro de macela e folhas de melão-são-caetano. Engomava-as à tarde, no ferro a carvão de lenha, de pé na cozinha, entre panelas de mungunzá e café forte, quente, que vendia aos operários da oficina mecânica Leobaldo Santos. O pai, Valdemar, esse, meu Deus, sumia todos os meses de inverno nos castanhais, sozinho nas “colocações”, como se chamava um buraco qualquer na floresta à margem de um igarapé sem nome. Desafeito a parcerias, solitário e silencioso por natureza, Valdemar tinha os olhos muito azuis, da cor do mar de que falava tanto e que só conheci em adulto, muitos anos depois, quando, à força dessas lembranças, atirei-me ao mundo para conhecer não só o mar, meu maior encanto. Enterrava-se meu pai nos garimpos do Tocantins mal chegava o verão. Dos pedrais trazia xibius, uns diamantezinhos encardidos e misteriosos, e gaiolas cheias de pássaros da cabeça vermelha (cardeais, aprendi noutros tempos) que juntos soltávamos em festa no quintal. Das matas, no inverno, trazia Valdemar um odor inenarrável de folhas, raízes, resinas, um verde que impregnava a alma e seus olhos azuis, as castanhas escolhidas uma a uma para a lavra, a ralação na raiz rugosa da paxiba, a mãos cheias, enquanto mãe Ana socava com vareta as bagas do cupu na própria casca. E vinha o fruta-pão cozido em água e sal para o café da manhã; e vinha o frutão mais doce que açúcar, e vinham o jabuti e as carnes de sol cheirosas do porcão do mato e de outras caças. Por onde andam Edgar Valente, tio Bena, Ulisses Pompeu, Zé Pretinho, Mãe Geralda, dona Tomazinha, a viúva Itália Domingues, que contava histórias de trancoso para nosso encanto? Cadê seu Elpidinho e seus caniços de bambu e seu cachimbo de taquara eternamente preso ao canto da boca? Desceram todos o rio das memórias... Para onde foram os milhares de trabalhadores que subiam em bandos como pássaros para os castanhais e lá morriam também como aves de arribação? Viraram seres encantados da floresta... Na lembrança mais antiga, já meu irmão Donato está atrás de um torno mecânico, as mãos grandes de adolescente engrossadas no cabo de ferramentas, no apuro da freza. Na minha infância eram todos mestres: mestre Amaral, mestre Leobaldo, mestre Rosa, mestre João do Padeiro, mestre Roque, mestre Alexandre, mestre calafate Balbino... Na beira da forja era só mestre Ferreiro, qualquer que fosse ele, como se não tivesse nome de gente. Trabalhava-se muito na casa em que nasci. Havia uma espécie de obsessão furiosa com o sustento da família. Donato trocara os estudos pelo trabalho desde menino. Valdemarzinho, meu pai, embora produzisse centenas de hectolitros de castanha a cada safra, em proporção dobrada crescia o débito no armazém. Mãe Ana juntava moedas num cofrinho de madeira, lavava e passava, vendia café e mugunzá, criava galinhas no quintal. Tudo uma tarefa sem fim. Magro e elétrico, cresci em disponibilidade. Primeiro para os livros, os gibis - que eram lidos, trocados, relidos, e os desenhos do Cavaleiro Negro exaustivamente copiados num caderno de arame. Depois os primeiros contos machadianos, a poesia telegráfica em letra miúda, escrita a qualquer instante, voraz como aprendiz de alquimia; e o jazz da Voz da América ouvido num rádio Transglobe Philco, alta madrugada, bem baixinho para não acordar os pais e o irmão cansados.; Por fim, os cigarros com os amigos igualmente desgarrados nas manhãs de pura luz. E que felicidade as peladas no Granito, o campinho, ainda hoje uma porção geográfica de liberdade enclausurada entre a última rua e a margem do rio Itacaiúnas, e o banho em algazarra saltando das árvores, as passarinhadas na cachoeira do Pirucaba, rio acima, a pesca em cestos de vime quando as primeiras águas do inverno estouravam a Grota Criminosa, que passava quase dentro da cidade, e por onde voavam cardumes de traíras contra a correnteza! Entre julho e setembro, atravessávamos o rio a pé e a nado, a água pela cintura, rumo aos cajuais da Colônia Quindangues. Certa vez alguém levou uma garrafa de cachaça Vale, jóia de Igarapé Miri, umas pitadas de sal, limões, e conheci os vômitos iniciais, o mal-estar do mundo à roda da cabeça. Escolas diferentes pela manhã e à tarde. Cheguei a ser matriculado até em aulas noturnas com o prof. Farias, um senhor linfático, anelão de prata na mão direita. Com aquela arma, Farias costumava deixar galos na cabeça dos menos comportados. Também cedo me puseram na velha oficina mecânica do mestre Leobaldo, entre motores de popa de fabricação sueca, jurássicos tornos mecânicos, tenebrosas forjas de refundir sobras de metais e os arcanos mistérios da recriação de formas, perfis, lingotes, barras que viravam peças de insonhadas arquiteturas. Grande sacada de mãe Ana, essa de por-me na oficina para aprender ofícios e responsabilidades! Ali, na oficina, havia um sentido novo de vida, amigos mais maduros, ruídos que aprendi a identificar de olhos fechados, cores e texturas, a fala e o riso de cada mestre e aprendiz, a canção da serra circular conforme a densidade da madeira, a luz inolvidável do acetileno e a magia da fusão do ferro e da solda, o formato sextavado das marretas de malhar ferro em brasa que eu não conseguia levantar de tão pesadas. No sábado, o dinheirinho gratificante entregue à mãe, que o regrava para o ingresso no cinema, a muda de roupa, o sapato do colégio. Mas, fora da algazarra, os livros e o silêncio. Em tudo isso havia uma tranqüilidade única e a convicção de que esta seria a ordem das coisas, a regra do mundo, sem qualquer dor. Dia desses um amigo perguntou-me como virei poeta. Eu não sei. Só sei que assim nasceu a poesia. Justo quando a solidão estava definitivamente instalada entre o menino e o mundo. P.S. - Esta crônica já tem idade. Mas no domingo, 13 de maio, fui ao cemitério de São Miguel rever o túmulo coletivo da família (amados pai, mãe, tia e sobrinho), cercado de alguns dos meus amigos de infância e de pioneiros desta cidade sem memória, e as lembranças e saudades foram tantas que resolvi desencavar esta declaração de amor e de saudade.

8 comentários:

Anônimo disse...

Gosto de pinçar palavras. E, desta crônica de amor e de saudades – menino e mundo – solidão e dor -, eu pinçaria “cresci em disponibilidade”.

Havia certa vez um bom e velho fazedor de quebra-cabeças que possuía poderes mágicos. Seu maior prazer provinha de criar quebra-cabeças com figuras encantadoras para as crianças que viviam na vizinhança. Esses quebra-cabeças não eram quebra-cabeças comuns. Tinham propriedades mágicas – quando a última peça era encaixada no lugar, raios de luz radiavam das imagens, enchendo as crianças de alegria. Tudo o que elas tinham que fazer era olhar para a figura. Mais nada. Para os pequeninos, era melhor que comer chocolates e beber copos de leite.

Um belo dia, o fazedor de quebra-cabeças realmente se superou. Ele pintou a mais encantadora de todas as pinturas, usando tintas mágicas salpicadas com poeira estelar e pincéis especiais com cabos envoltos em ouro. O fazedor de quebra-cabeças ficou tão entusiasmado com a sua criação que decidiu não picotar a pintura em peças separadas de quebra-cabeças. Ao invés disto, ele queria que as crianças sentissem de imediato a mágica toda.

Assim que terminou de embalar a pintura, um menininho entrou na loja esperando encontrar a última criação do fazedor de quebra-cabeças. Ele então entregou o pacote com entusiasmo. O sorriso brilhante do menino de repente desapareceu. Seu rosto ficou um pouco triste. Claramente, ele estava desapontado com alguma coisa. “O que há de errado?” perguntou o fazedor de quebra-cabeças. O menininho explicou que montar e criar o quebra-cabeça eram metade da diversão! O fazedor de quebra-cabeças imediatamente entendeu. Com o mesmo amor e carinho que investira em criar a imagem original, cortou e desmontou a pintura. Ele então espalhou carinhosamente as peças separadas dentro da caixa. Ele dera às crianças o que elas realmente queriam mais do que qualquer coisa – a alegria e a realização de montar o quebra-cabeça mágico desde o início.

O Mundo Infinito foi desmontado e transformado num quebra-cabeça. Nós nos tornamos co-criadores de nossa própria plenitude. Essa sabedoria também já tem idade.

Um beijo e bom dia.

*adorei este azul !

Ademir Braz disse...

Cris:
Não quebre sua cabeça, nem pince gotas que o oceano é imenso, profundo, móvel, caleidoscópico. A vida tem dessas coisas, tipo assim.
E quando nos faz nômades, monges ou mutantes, então o detalhe não tem significado apenas visível - desborda para o intangível.
Obrigado por enriquecer este blog.

Anônimo disse...

Querido Pagão,

senti saudades até do que não conheci!

Penso que os poetas nascem prontos.

São crianças, depois jovens, homens ou mulheres, trabalham e brincam, lêem gibis, lêem livros ou não.

Alguns se casam outros não, uns têm filhos, outros não t~em esta graça. Uns publicam livros, outros guardam versos nos cadernos nas gavetas.

Mas todos nascem com a poesia nos olhos, nos ouvidos, na ponta dos dedos, como fardo, como sina, como sinal posto na testa, como se fosse a corcunda que alguns carregam nas costas.

Só tenho uma reclamação: procurei na descrição de Dona Ana os olhos molhados - tão vivos -e o riso ingênuo.

Você não os descreveu.

Caramba!

Abraço grande.

Ademir Braz disse...

Ôi,Bia!
Eis aí, sim, algo que esqueci: os olhos de don'Ana. Talvex por ter me ficado dela, mais vivamente, certos conceitos bem-humorados(às vezes trágicos e cômicos de uma só vez)sobre a vida circunstanciada à pobreza em que nascemos, crescemos e pelo menos eu vivo até hoje.
Ela disse, já não me lembro a propósito do que, certo dia: "Meu filho, pobre só come na hora certa - a hora que tem". rsrs
Outra, a respeito de algumas vezes a gente ter de sujeitar-se às pavorosas condições de ocupar espaço alheio: "Meu filho, casa alheia é brasa no seio". Puxa, deve doer pra caramba! Inda mais que me lembra aquelas pedras incandescentes de côco babaçu com que ela enchia o ferro velho de engomar.

Ademir Braz disse...

Bia, caríssima:
Estou pensando (já estou juntando coisas há tempos) sobre a história política recente de Marabá. Engraçado que estou indo de frente para trás: de agora para os anos 70 - até 1970. Depois, penso chegar a 1960, período mais difícil por falta de documentação e porque a maioria dos nossos políticos daquela época já migraram para o Oriente eterno, onde não penso em ir tão cedo...
Assim, eu gostaria que você me mandasse aí, de vez em quando, seus registros de memória. Acho mesmo que você deveria escrever sobre a sua experiência, revelando os bastidores daquela batalha contra o atraso e o cativeiro,como se dizia então. Você nunca pensou em fazer um livro a respeito?
Seria possível me ajudar a rever e passar a limpo esses tempos?
Um abraço

Anônimo disse...

Querido,

passar a limpo com você, eu passo.

Confesso que algumas vezes pensei em escrever, até para que não se apagasse da minha memória tantos anos vividos aí ou para que eu não os relembrasse com as distorções do presente!

Mas, sempre achei uma coisa estranha escrever como personagem e não sei bem o que significa isso, mas é que é assim que defino este incômodo. Foi assim também para começar o Blog e talvez por isto o apelido roubado à neta: sou uma Bia falsa e isso facilita escrever as minhas verdades.

Mas, voltando à proposta: gostaria sim de ter você como parceiro pra reavivar a memória do cativeiro e do atraso, cuja coleira hoje é um pouco menos resistente.

A gente se fala por e-mail, coloca a memória mo quaradouro pra ela se livrar das manchas da minha e da sua versão passional desta Marabá antes de passá-la a limpo.

...rsrsrs....

Mando meu e-mail.

Abraço grande

Unknown disse...

Poeta,

Que bela declaração o poema "Razões do coração". O texto me lembrou o estilo literário de José Lins do Rêgo na obra "Menino de Engenho". Toda vez que leio tenho a sensação de sentir o cheiro forte da cana-de-açucar sendo transformada em açucar.
Eu comecei a ler ouvindo minha mãe (Necy) contar fábulas infantis. Também ouvia pela Rádio Nacional de Brasília, histórias e novelas e personagens mitológicos.Eles sempre povoaram meu imaginário e de alguma forma me fizeram identificar minha posição no mundo. Cinderela? princesa? borralheira? heroína? não sei... depende daquilo que estou construindo.
Acho que a vida é uma grande obra de arte. Nela , os poetas tem a missão de eternizar o tempo,não o tempo, mas as emoções que que cada, momento, ciclo nos proporcionam. Um abraço querido.

Bia Cardoso

Ademir Braz disse...

Bia, princesa:
A liberdade é um processo diário de desconstrução daquilo tudo que nos deram como verdade absoluta. Parabéns por ter, sozinha, alcançado um grau de auto-consciência que vai levá-la a universos cada vez mais amplos, tanto internos quanto externos.
Esta é a grande alquimia que refaz e dá sentido à nossa vida.
Vá fundo, princesa. E nesta ida, não volte. O que nos deram como herança são conceitos velhos, úteis para a dominação de quem a exerce sobre nós - não para nós.
Um abração!