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sexta-feira, 2 de maio de 2008

Charles guerreiro e o dragão de ferro chinês

Parece que foi em 1986 que seu Bernardo, um lavrador oriundo de Castanhal, neste Estado, desembarcou com mulher e crianças no terminal rodoviário de Marabá. Ele vinha tangido pela penúria que assolava o campo, efeito dos estertores da ditadura militar e da inflação sem controle que corroíam celeremente a economia nacional. No sul do Pará, Serra Pelada também chegava ao fim deixando à própria sorte milhares de garimpeiros blefados, mas ainda agarrados (como até hoje) numa espantosa e inacreditável esperança de que um dia tudo vai mudar para melhor, principalmente agora que se livraram de Sebastião Curió. Em 1987, vale recordar, num gesto de desespero, os garimpeiros bloquearam a ponto rodoferroviária do Tocantins, de onde foram removidos à bala por tropas militares do governador Hélio Gueiros. Cercados entre duas frentes de metralhadoras, muitos se atiraram de 60 metros de altura, na direção do rio, onde as águas se tornam duras como pedra para a queda livre, enquanto inúmeros outros caiam baleados sobre as pistas laterais da ferrovia. Dessa chacina, que para muitos foi superior à da Curva do S, onde as tropas do governador Almir Gabriel trucidaram 19 trabalhadores sem-terra, em 17 de abril de 1996, quase não há registro – apenas uma cruz anônima na cabeceira da ponte. Mas o garimpo, em 1986, não muito diferente de agora, aliás, ainda atraía aventureiros sem escrúpulos e trabalhadores arruinados de toda origem. Entre esses trabalhadores, seu Bernardo. Que mal desembarcou disse à família que “ia bem ali e voltava jazin”, e desapareceu para sempre. Largada com as crianças, a mulher de seu Bernardo passou dias ali mesmo, no piso encardido da rodoviária, à mercê da caridade pública. Um dia, Deus seja louvado!, alguém passou por lá e convidou: “Vem com teus meninos prum acampamento no Peba, mulher, lá pelo menos tem o de comê!...” A mulher embarcou primeiro a filharada no caminhão e todos sumiram na poeira. Foi num acampamento de trabalhadores rurais sem-terra, lá no Peba, que Charles Trocate cresceu livre como bem-te-vi. E bem que viu (e vê) e conviveu (e convive) com tudo: a coragem dos camponeses, a perseguição do Estado e de latifundiários, o assassinato de lideranças, a dissimulação dos agentes infiltrados do aparelho repressivo, a organização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra (MST). E bem que aprendeu, inteligente e autodidata, a transformar em poesia e práxis esse cotidiano, e a construir a si mesmo e ao seu mundo, de forma livre e autônoma. Nessa faina, beirando os 30 anos, esse menino Charles já andou pelo Chile, Venezuela e México, a juntar flêpas e cravos da cruz comum que martiriza os camponeses em qualquer parte do mundo, e a trazê-los, apóstolo, e mostrá-los como elementos sutis da mais brilhante e revolucionária pedagogia da miséria em curso na América Latina e neste país, porque “o tempo é de usurpação/ como são de gesso suas motivações./ Quem duvidou já sente pisadas no telhado/ e uma realidade pálida./ (...) “É tempo de desgovernos/ e governos não dizem amém.” Charles é um guerreiro em formação. Cuidam dele Ayala, Rai, Eurival, Isabel, Manasses, tantos outros. Com seu badogue e seus amigos, Charles guerreiro atira pedras certeiras no olho enorme e voraz do dragão chinês de ferro e ferrugem.

Um comentário:

Anônimo disse...

Atenção poeta! Muita atenção ao tornar o que é tragédia em poesia. A história que tu contas, assim casualmente, não é uma história bela e nem de superação. É história da mais bruta violência possível praticada na esfera íntima, a do abandono do lar, praticada tão amplamente por estes sertões. Suas cicatrizes, até hoje, margeam a trajetória de homens como este de quem falas, o tal Charles Trocate, que não conheço, mas reconheço. Tornam-se homens que é difícil saber se são guerreiros ou são guerra, pois uma coisa se mescla à outra, são homens de repertório cerceado. Atenção poeta! Em dar lirismo à tragédia, em dar beleza à tristza. Isso é o que nos confunde no tratar correto das coisas...