sexta-feira, 19 de março de 2010
Pequena história de uma assombração
Supõe-se que os rapazes chegaram à aguardente na convivência com os descarregadores do porto, uns sujeitos que passavam todo o inverno a subir e descer, noite e dia debaixo de chuva, paneiro encharcado de castanha nas costas, os degraus da escadaria de madeira inclinada entre o rio, onde aportavam os barcos, e o depósito de madeira, onde as pás e os hectolitros juntavam e mediam a produção. Os motores de popa vinham carregados de muito longe, dos igarapés e castanhais no fim do mundo – Poção do Óleo, Some-homem, Deus me livre, Vai quem quer, Refúgio dos pecadores. Para suportar o trabalho e o frio insanos, quase nus em gongós esfarrapados eles se encharcavam da cachaça pura vendida na fieira de botequins ao longo da ribanceira do Tocantins, entre as casas comerciais dos galegos. Enquanto eles iam e vinham um após outro enregelados de frio e cansaço, em algazarra para se animar mutuamente, garotos aos magotes saltavam n’água atrás do bago caído dos barcos e pentas, entre a carregação e o descarrego. Depois vendiam o apurado dessa catação no próprio depósito do dono do motor e das castanhas, e com o dinheirinho empanturravam-se de balas, pirulitos da Zeni, bombons cala-a-boca do Antônio Gemus – umas bolotas enormes de açúcar colorido na ponta de um palito -, e gibis e filmes no Cine Marrocos.
Dino era um desses meninos mergulhadores. Vivia-se o início da década de 1960 e ele entrara já na adolescência; mas tinha o corpo miúdo de um idoso, e daí o apelido Velho Dino. Morava com a mãe numa rua próxima ao cemitério, freqüentava escola pública e adorava tomar banho na cachoeira do Pirucaba. Àquela época, era já comum os adolescentes se agruparem por afinidade e vizinhança. Assim, havia a turma do Canto Verde, onde ficavam o cemitério, a oficina mecânica, o estaleiro, o campinho do Granito, a piranheira do Buraco das Moças e o rio Itacaiúnas; e os meninos do Cabelo Seco, bairro de pescadores e bons músicos, ali onde se juntam o Itacaiúnas e o Tocantins. Canto Verde e Cabelo Seco se pareciam muito, seus meninos mergulhavam juntos, batiam bola, e nada tinham a ver com a luxuriante classe média da Rua Grande. Nem com a molecada encrenqueira do bairro da Santa Rosa.
Velho Dino tinha um jeito engraçado: gostava de rir e fazer rir com piadas e seu franco bom-humor. Quando começou a beber, parece que foi ao mesmo tempo em que toda a turma das redondezas do cemitério. Juntavam-se em grupos num botequim qualquer, pediam meia garrafa de cachaça Vale e um refrigerante, ou só a cachaça mesmo, ao alcance de suas moedas. Alguém arranjava um caju, limões, uma carambola, um punhado de sal. Sim, eram dias inteiros de riso, de horas que se iam sem pressa nos botequins.
Um dia, porém, a turma do Canto Verde excedeu-se; entrou pela noite na boemia e quebrou a regra geral de estar em casa ao fim da tarde, penteada e limpa sob as luzes recém-acesas, para o jantar em família. Dino desceu cambaleante a Rua Nova falando sozinho, quase meia-noite, na rua mal iluminada. Ia dizer o quê para a mãe, certo da surra já ganha? Mesmo assim bateu devagar na porta de madeira com os nós dos dedos, trêmulo e desesperado. A taca ia ser monstra! De dentro, a mãe deu o maior esturro: Eu não vou abrir a porta, moleque, vai dormir na casa dos teus pareceiros! Mas, mãe, tá frio, me dê pelo menos meu lençol!... A mãe meteu o lençol branco por um vão da porta, um escracho atrás do outro, e Dino embrulhou-se e olhou para um lado e outro da rua sem saber o que fazer. Lembrou-se então da capelinha do cemitério de São Miguel, ali na esquina, e nem duvidou: saltou o muro, avançou pelo corredor entre os mausoléus e deitou-se na pedra erguida bem no meio da sala, onde as pessoas velavam os amigos mortos antes do sepultamento. Deitou e dormiu.
Lá pelas quatro da manhã, irado de fome, acordou com a voz do padeiro. Naquele tempo, muito antes da aurora os entregadores saíam a pé nas ruas da cidadezinha com um cesto enorme cheio de pães quentinhos às costas, deixando encomendas de porta em porta. Padêêêêro!, ó o pããããoo! diziam, numa voz soturna e melancólica que ecoava na madrugada. Mas quando o padeiro viu aquele vulto enrolado no lençol branco a gritar Ei, padeiro, peraí!, e a correr em sua direção, vindo do fundo das sepulturas, terrou os pés no mundo, de sorte que do portão do cemitério até à padaria no centro distante da cidade as ruas ficaram coalhadas de pão.
Sem entender nada, Dino catou uma ou duas bisnagas, comeu, e voltou à pedra dos insepultos.
E deu-se que pelas sete da manhã chegaram os dois homens encarregados de abrir covas e zelar sepulcros. Ao verem Dino enrolado no lençol sobre a pedra, reclamaram que o Sesp estava, que absurdo!, a mandar cadáver de indigente até de madrugada. Naquele tempo, quem morria sem parentes para reclamar o corpo no hospital era mandado enrolado em lençóis diretamente para a sepultura, sem o privilégio sequer de um caixão barato. E como chegava, era jogado com pano e tudo na cova rasa. Zangados e reclamões, os dois passaram à parte de trás da capelinha, onde havia uma trempe no chão. Cataram gravetos, acenderam, juntaram o pó torrado, e o cheiro do café, ao perfumar a manhã, penetrou até à alma de Dino. Agachados em torno do fogareiro, os dois não o viram chegar. Só ergueram a cabeça quando ouviram alguém pedir em voz rouca um cafezinho e viram aquele vulto branco e magro atrás deles, enrolado até à cabeça e com um pedaço de pão na mão. Na corrida, os dois derrubaram parte do muro ao saltar aos gritos para a rua detrás do cemitério, e dizem que até hoje não voltaram sequer para receber o salário.
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9 comentários:
Caríssimo Ademir.
Belas e oportunas as tuas relembranças.Alguém disse que "viver de lembranças é morrer de saudade" e isso é pura realidade.Lendo os teus escritos sobre a Marabá de antanho, viajo no pensamento e parece que tudo está ainda muito vivo.Não é que sejamos saudosistas, mas realmente, os dias de antes pareciam mais longos, tranquilos e mais apetecíveis de serem vividos e tinhamos conosco pessoas que marcaram indelevelmente nossas vidas e esta cidade e já não mais estão em nosso meio.Infelizmente, estamos perdendo nossa memória e tu és um dos poucos cronistas que mergulham na brumas do tempo para resgatar histórias como esta.Traz mais rememorações para nós caro Ademir e alimenta a fonte do conhecimento das gerações atuais que tão pouco conhecem dos vultos que implantaram este marco de civilização que hoje atrai os olhos do Brasil e do Mundo.Continua a plantar as boas sementes e a cultivá-las com carinho.Não importa o que digam ou pensem.Sê diligente e o futuro agradecerá.
O amigo, colega, leitor e admirador
Plinio Pinheiro Neto
Há um tempão eu não vinha aqui ao Quaradouro... E dou com esse texto maravilhoso, pleno de vida e juventude! Ademir, obrigado!
Caro Plínio:
Obrigado por suas palavras de estímulo. É para contar a história da nossa cidade e nossa gente que estou escrevendo um romance ou novela ou quer que seja chamado "Lugar dos invisíveis", sobre um tempo em que a matinta perera andava nas nossas ruas e a buiuna assustava no pirucaba.
Nesta história há gente como Fortunato Costa e outras pessoas - Pamica, Taracanga etc. Queira Deus dar-me tempo e oportunidade de concluir esse escrito e outros que, na forma de crônicas, narram nossas vivências.
Prezado Artur:
Agradeço a visita e as palavras agradáveis. Por favor, venha mais vezes. Quaradouro não teria sentido sem os seus leitores.
Boa noite, sou cidadão marabaense que acaba de ouvir populares comentando que na manha do último domingo uma senhora grávida com suspeita de H1N1 deu entrada no hospital regional, e que ela e o bebe tem todos os sintomas graves da doença. Ate hoje estao lá, mas a prefeitura diz nao ter dinheiro para mandar o exame ou a paciente para Belem. É necessaio que a imprensa local investigue e pressione com urgência, é caso grave que a imprensa pode e deve ajudar a averiguar, façam o seu papel por favor em nome dessa senhora, de sau familia e de todos nós.
Grande Ademir!!!
Parabéns !!!Como sempre genial!!!!
Como ex-morador da Barão do Rio Branco(morei lá entre 1975/1978) me considero um verde-cantista por adoção.
o blues sonolento do padeiro, os jasmins da casa Belém, o urro grave quando a seleção da Lemar fazia um gol.
Lembrei de um jogo de futebol que fizemos nos Quindangues, e que por uma desinteligência qualquer terminou em corre-corre e disse-que-disse.
atravesssar o Itacaíunas a nado depois de uma refrega não foi fácil.
agora, como vc tornou pública a intenção de lançar um livro de contos, só nos resta colocar um pouco de pressão e cobrar: quando sai o livro??
e por falar em cobranças: quando vai ter de novo aquela piabanha com a cerva geladissima?
grande abraço!
Marcio Mazzini
Eis nosso Márcio, o Mazzini! Evoé!
O rio está cheio e quando começar a vazante as piabanhas virão. De já, o senhor é meu convidado.
O livro de contos está pronto. Chama-se "O cacho verde e ácido do murici". Há outro: "Crônicas insensatas e outras malvadezas", este, claro, de crônicas. Tem "A terra mesopotâmica do sol", poesias sobre a terra sagrada. E outros que não lembro agora.Publicá-los? Algum dia, quando Deus e o Diabo tiverem um tempinho para colaborar com a sua graciosa generosidade.
Mermao Ademir…………….
Boa historia, me faz lembra da minha bela infancia no marabazinho (av marechal deodoro )a onde minha casa era do lado de um barracao de castanha, e a molecada passava o dia brincando do trisca entre os barcos no rio tocantins a onde a gente pulava na santa rosa ai decia ate no cabelo seco pelo rio ai os olhos ficava muito vermelho ai batias uma mao na outra e falava cu de pato cu de pinto e colocava no olho, pra nossas mae nao ver os olhos vermelho e brigar….kkkkk
Grande abraço Ademir
DEUS é contigo……………
Ernesto Almeida Coimbra Filho
Sobre o Dino.
Um dia,mal o sol bateu alí no Rebojo do Marabazinho,lá vinha o Dino. Comendo um pão,dois outros na outra mão quando o Bufa Pão apareceu,louco da vida.Dino percebeu e saiu na carreira com o Bufa Pão no seu encalço. Dino vinha roubando pão que era entregue nas casas pela padaria do pai do Bufa Pão, que hoje é assessor do Asdrubal,tá ligado ? Esse Dino..
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