De Lúcio Flávio Pinto, no Estado do Tapajós de 16.04.2007
Desenvolvimento
O que fica: o buraco
Há meio século começou o ciclo dos “grandes projetos” na Amazônia, com o embarque do primeiro carregamento de manganês do Amapá. Os projetos se multiplicaram desde então, as histórias se repetem, mas ninguém parece interessado em tirar as lições que elas podem oferecer. Por isso, repetem-se os erros.
Em janeiro de 1957 o primeiro navio desatracou do porto de Santana, no Amapá, carregando 20 mil toneladas de manganês destinado aos Estados Unidos. Depois de quatro décadas de ausência do mercado internacional, em conseqüência da estrondosa derrota de sua borracha para os concorrentes asiáticos, abstinência interrompida apenas durante a Segunda Guerra Mundial, no esforço para abastecer de látex os países aliados, a Amazônia voltava a oferecer um produto de interesse mundial. Era o início de um novo ciclo, o dos “grandes projetos”, que conectaria de vez a região a um planeta crescentemente globalizado e faminto de matérias primas.
A Icomi, responsável pela exploração da rica jazida de manganês da Serra do Navio, conseguiu uma concessão de 50 anos junto ao governo federal para realizar a lavra, numa parceria do empresário Augusto Trajano de Azevedo Antunes com a americana Bethlehem Steel, então a segunda maior siderúrgica do mundo. Mas não precisou de tanto tempo: antes do prazo contratual não havia mais minério com teor comercial. A empresa simplesmente pôs fim às suas atividades e devolveu aos amapaenses o rescaldo do seu polêmico projeto. Até hoje o Amapá não conseguiu dar conta do desafio de retomar ou refazer essa história. O meio século do começo da extração de manganês se completou sem sequer um registro na imprensa. A história acabou e ninguém mais parece interessado nela, como se dela nada mais se pudesse extrair, já que não há mesmo mais minério para explorar.
É um erro. Quando o “grande projeto” do manganês ainda estava em fase de implantação, o governador Janary Gentil Nunes, o “fundador” e dono do Amapá, juntamente com o irmão, Coaracy, apresentou-o como a salvação do Território Federal, desmembrado do Pará em 1943 como uma unidade federativa de novo tipo, semente de um amadurecido Estado no futuro. Disse Janary, no festivo discurso de inauguração da IX Exposição de Animais e Produtos Econômicos, quatro anos antes da primeira viagem de manganês amapaense: “Quais são os reais objetivos que perseguimos? A exploração do manganês, que muito breve será realidade. A Usina Hidrelétrica do Paredão, que transformará o Território no maior centro industrial do Norte. A industrialização de manganês, ferro, bauxita, papel, madeira, fibras e óleos vegetais. A instalação no porto de Macapá de terminais de combustíveis para a exportação do petróleo de Nova Olinda. A duplicação da atual produção de borracha do país pelos seus seringais de cultura. A pesquisa sistemática de toda área territorial para identificação de novas fontes de riqueza. O povoamento dos vales dos rios Jari, Cajari, Maracá, Vila Nova, Amapari, Araguari, Amapá Grande, Calçoene, Cunani, Cassiporé, Uaçá e Oiapoque. A conclusão da rodovia AP-BR-15, espinha dorsal política e econômica do Território. A multiplicação das searas e dos rebanhos. A construção da cidade de Tumucumaque. A criação do Estado do Amapá”. A hidrelétrica do Paredão (batizada com o nome de Coaracy Nunes) saiu, embora com 15 anos de atraso em relação à previsão inicial. Mas de todos os investimentos indicados por Janary, apenas uma usina de ferro-liga resultou de perene (embora precário) do projeto da Icomi. Todas as combinações possíveis de produtos a partir do manganês para industrializar o Amapá ficaram no papel. Um plano de industrialização chegou a ser elaborado, em 1955, prometendo que desta vez a mineração resultaria “num oásis de paz e prosperidade”. Ela não repetiria “a triste história de outrora, resumida em esgotamento e miséria”, prometia o economista responsável pelo plano, a pedido do governo territorial, Edouard Urech, ex-integrante da Missão Klein & Saks.
Depois da extração de 19 milhões de toneladas de manganês de alto teor, ao longo de quatro décadas, o Amapá era pouco mais do que “esgotamento e miséria”, edulcorado pelo suspeito privilégio de estar sendo comandado politicamente por um Janary mais bem-sucedido, o senador e ex-presidente José Sarney. Nada de novo, portanto, na linha das regiões coloniais da Terra. Nem mesmo com a multiplicação de projetos semelhantes aos da Icomi, agora revestidos de uma encadernação caprichosa, ajustando-os às “responsabilidades socioambientais”.Se a data redonda do capítulo do manganês, “velha” de apenas meio século, passou em brancas nuvens, efemérides mais recentes precisam ser trazidas à consciência dos contemporâneos. A descoberta da jazida de minério de ferro de Carajás, a melhor do planeta, fará 40 anos em julho. Certamente haverá comemoração, agora que a dona da mina, a Companhia Vale do Rio Doce, está mais atenta às exigências de fazer amigos & influenciar pessoas.Mas já passou batida a data anterior, a da descoberta da jazida de manganês do Sereno, também na província mineral de Carajás, feita pela Codim, em 1966, que inaugurou formalmente a nova corrida do setor às mineralizações do mesmo filão que possibilitou o manganês (e outras substâncias, só recentemente mais bem avaliadas) no Amapá. Era resultado da fixação dos Estados Unidos com a “pedra preta”. O país, que saíra da 2ª Guerra como o mais poderoso (de então e de todos os tempos), em 1950 só obtinha em seu próprio território 7% do manganês usado nos altos fornos das suas siderúrgicas, que processavam mais de um terço do aço do mundo. Nesse ano, os EUA iam buscar no exterior 50% de todos os minérios que consumiam. O Brasil era o segundo principal destino, superado apenas pelo vizinho Canadá.Um órgão foi então criado, atendendo sugestivamente pelo nome de Comissão da Política das Matérias Primas, e um relatório foi produzido (o Paley Report) para assegurar o fluxo de minérios em direção ao gigante do Norte pelas duas décadas seguintes. Naturalmente, muita teoria utilitária foi gerada na matriz do saber e disseminada nos seus satélites.
O “plano de industrialização” produzido por Urech em 1955 para o governo do Amapá se colocava dentro dessa moldura analítica. Ele garantia que o “interesse direto já manifestado pelos americanos pela exploração das jazidas ricas, no Labrador, África, Venezuela e Chile, torna a posição da ‘Cia. Vale do Rio Doce’ um tanto sombria no futuro. – Somente um estado de emergência daria, talvez, grande impulso a uma exportação rentável dos minérios de ferro brasileiro”.Coerente com essa presunção, a United States Steel, campeão mundial da siderurgia nessa época, não obtendo na margem norte do rio Amazonas o mesmo sucesso que sua competidora, a Bethlehem, conquistou na margem sul, em 1977, desinteressada pelo ferro de Carajás, desfez a sociedade com a CVRD, recebeu 55 milhões de dólares de indenização pelo que realizou em toda década anterior, pioneiramente, e aí ouviu o canto do cisne da sua posição no topo da siderurgia. Nunca mais foi a mesma.
Nesse ano, em que a Vale, ainda estatal, passou a executar sozinha o projeto Carajás (mais uma data redonda: 30 anos), o desafio não era nada desprezível. A mina ficava a quase 900 quilômetros do litoral, no meio da selva amazônica, num nível surpreendentemente elevado (entre 500 e 600 metros de altitude) para a planície na qual a região era reduzida nos manuais explicativos. Para ir do porto até ela era preciso abrir uma longa ferrovia, que absorveria metade dos três bilhões de dólares de custo previsto do empreendimento. Viria a ser a maior ferrovia de uma única via já construída no Brasil. Em seu eixo a região era inóspita a uma obra desse porte: depois de Santa Inês, no Maranhão, no rumo oeste, a primeira cidade estava a quase 500 quilômetros de distância. Do ponto de vista da engenharia, foi um sucesso, embora o terreno plano tenha ajudado: não foi preciso construir um só túnel e as obras de arte, com 63 pontes e viadutos, não ultrapassavam 11 quilômetros de extensão. Mas em março de 1985 (mais uma data, ainda que não redonda) a ferrovia foi inaugurada. E sua estrutura era tão sólida que, mesmo em linha singela, dá conta atualmente de escoar 100 milhões de toneladas de minério, quando o projeto ferro de Carajás previa “apenas” 35 milhões de toneladas. Foram construídos tantos pátios e terminais que, hoje, falta pouco para a ferrovia estar duplicada. E é isso que assusta quem se mantém um pouco mais atento às histórias, preocupado em que elas não sejam a repetição do enredo de sempre e as promessas de novidade não passem de conversa fiada.
Se a Icomi levou 40 anos para esgotar a rica jazida de manganês do Amapá, a CVRD já exportou mais do que as 20 milhões de toneladas em metade desse tempo, na posição de maior vendedora de minério de ferro do planeta (responsável por um terço desse minério em circulação entre os oceanos). Serra do Navio durou pouco menos de 50 anos. A mina do Azul não irá muito além de 30 anos. Os fabulosos depósitos de ferro, projetados para 400 anos de lavra, talvez apenas ultrapassem o primeiro século. Com mais tempo e menos exploração, os amapaenses um dia alimentaram o sonho de se tornar “um oásis de paz e prosperidade”. Na conflituosa e saqueada província de Carajás, num Pará que se tornou exportador de energia bruta, não nos permitimos sequer sonhar. O futuro, por isso, passará rápido, deixando buracos na terra e o apito do trem no ar.
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