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terça-feira, 22 de maio de 2007

Sobre índios e outros estorvos

História natural: a memória tribal narrada por um sobrevivente ei parceiro tem um pássaro verde no teu ombro e uma flor de sapucaia em teus cabelos. não os espante, parceiro. não os destrua, parceiro. foge com eles, minino, que tem grileiro no muro faz fogo onde foi roçado somos raça em extinção. ave verde e sapucaia já quase num dá pra ver o boi comeu nossas matas casa tapera mandinga a fé cega do terçado já num tem o que cortar o fogo feio do truste fez fugir fera mambira o mangangá a mucura seo jabuti seo preá a onça mais roncadeira não rosna mais ao luar. desculpa nossa pobreza. um dia já fomos ricos: a tribo, pra suas festas, vestia-se toda de cores: vinha a buiúna das águas do Pirucaba o murmúrio (que mora na profundeza); tinha matinta-perêra de madrugada na rua; o cupelôbo, na mata, deixava riscos no chão. alma penada era tanta que tropeçava na gente! pra se prender uma bruxa, fazia-se oferta de fumo, dava três voltas na chave durante seu canto noturno. desculpa nossa pureza. eita, parceiro minino, peita no mundo dipressa que inté a língua perdemos! o juquireiro é peão, conforme dizem os senhores; a posse, onde nascemos, em tempo de matas virgens, não é mais posse, é grilagem e a gente somos grileiro invasores turbadores. “Saia do meu latifúndio senão eu chamo a polícia pra estourar o aparelho!” (ai, mai frendi parceiro, tá dando pra entender?... vou rir que está doendo!) tijolo da minha casa não é mais tijolo: é tejolo; e por me sacar a lajota, a tijolada final quem leva em rabo sou eu) ai, saudades!... antigamente, à noitinha, a gente ia pra porta conversar com os vizinhos; botava cadeira em roda, cobrindo toda a calçada e haja histórias de fada, do casarão assombrado, da visagem beradeira que assustava os meninos... agora, é televisão... até da vida alheia já se deixou de falar! desculpa nossa aparência. pistonar, hoje é paquera. amar, por detrás dos muros, virou coisa de museu; papa-anjo é cocoteiro, meu samba virou sambão. a zona, com seus puteiros, foi à França e não voltou: é cabaret, é boite, é rendez-vous e madames... suicidaram o pecado e fiquei a ver navios. Ai, boemia!... Pau-d’urubu... Zonzeira... Rua do Poço... Vou eu subindo, entre menino e moço, pro Pindura-Saia, a flor do lodo. Nenhum amor noturno aí me espera. Mas, na sala infrene, a vã quimera, de repente me envolve o corpo todo. Ó frenesi de peitos que a blusa das mulheres expõe à luz difusa... Eu sonho seios coxa amor maduro (enquanto um preto canta com voz rouca, e ganem os metais presos à boca, meus olhos incendeiam no escuro)! (às vezes, a lembrança me torna vergonhosamente lírico...) desculpa nossa incerteza. a gente só queria estar sozinho: ver na matinê – em plenos anos 60 – os seriados do zorro os filmes de boris karloff com os olhos da primeira vez; o king-kong encardido... a louca vida de cristo... tão mutilada a fitinha que a cada ano passava um poucochinho mais curta... (ah, a nostalgia que leva o burguês ao cine-clube!) a gente roubava moça pra se casar no outro dia; a gente só via gente quando os barcos de castanha voltavam da capital. então a gente corria, só pra ver os estrangeiros. o catalina de guerra pousava n’água e subia carregadinho de carne pros ricos da capital; os filhos dos nossos ricos estudavam em belém, e quando vinham de férias, com suas roupas estranhas, a gente olhava pra eles como chegados do céu. (honra se lava com sangue, aprendemos em menino; e um dia nos pagarão todo o mal que nos fizeram.) desculpa nossa tristeza. vassoura, detrás da porta, mandava embora a visita; pra que não chovesse à noite, atrapalhando o programa de encontrar namorada (que já tava no Marrocos, reservando duas cadeiras) prendia-se a chuva num copo; o cabilouro do boi, se comido atrás da porta, fazia ficar bonito. perdoa nossos mistérios. somos sobreviventes tribais. extinta a tribo, restou-nos o botequim. não me pergunte que fim levou seo Santos, o plantador dos mortos, nem onde está Ceará boista-de-boi ou o Cururu-tem-tem que dava carreiras olímpicas atrás dos moleques, xingando a mãe, a puta que pariu, azuado com o apelido tido aos berros por mil bocas risonhas sob o sol; nem queira saber de Zabelona, a louca municipal, ou do cara que passava o dia inteiro imitando instrumentos ácidos, cantando e assobiando e batucando com uma lata de querozene esso jacaré vazia sobre o ombro, encostada à face, e a sonoridade pura do prazer se despejando da lata e de seus olhos vesgos. eles estão mortos. Nós todos estamos mortos. a cacofonia da lata em meus ouvidos chama-se saudade. restou-nos talvez algum canto ancestral uma eterna panela de ferro em tripé um caroço de ouriço (duro, áspero, sujo, carregado de frutos leitosos – a imagem mais concreta de nossa alma trucidada); talvez ainda um paneiro de castanha pendurado entre peles de obra, chapéus de palha, arco e flecha, cocares trágicos - fósseis roubados ao dilúvio – e que hoje, destroçada a essência, decoram como escalpo a sala dos conquistadores. entenda a nossa miséria. era gostoso votar, eleger o mandatário. era tudo rica gente, quem usava o microfone. nesse tempo, de repente, a gente era importante: ganhava muda de roupa, comia carne no almoço, bebia cerveja às pencas, andava de roupa branca e ar de festa na cara... tudo por conta dos ricos. o voto, uma coisa cara; a gente se corrompia, enchia a pança de pinga, brigava na putaria pra pagar uma rodada, fazia puta chantagem com os donos de nossa vida (êta vingança paidégua!) alcança nossa alegria. a vida exposta no muro sempre em pasquim gozador de vez em quando fazia esc6andalo doce e feroz: “o pai do fulano é corno” (geralmente um boçal) e lá vinham as coisas podres (que a gente sabia há tempo) escrita em letras cruéis na porta do mercadinho. de melão-são-caetano a gente fazia judas. um dia, dois lambanceiros, carregando um desses monstros, deram de cara com a justa. era escuro e era tarde: - onde vão, rapaziada? - - levar o porre pra casa. - muito bem, se a gente pega leva logo pro xadrez. entenda nossa virtude. (a vida é um trem-expresso; a noite, meu sonho aceso; a luz do sol, o meu medo, coisas que trago e não calo) dona Totó, matriarca, levou a vida em chinelos. Tinha medo de feitiço e se pegava nos santos. Somente para assustá-la, sal pimenta e pião-roxo em sua porta deixou-se; levou a velha um mês, lavando a porta com banhos (e nós, por trás, sisbaldando) sic transit gloria mundi! amas a morte, parceiro? Ai, que saudade que eu tenho Dos tiroteios de outrora!... Geraldina cangaceira mandou matar o marido nos garimpos do pedral. depois comprou um cavalo todo arriado e fogoso, vestiu uma calça de homem e bebia em botequim. tinha papo e andava armada. era o terror dos meninos. um dia foi encontrada cravada à faca no chão; do coração decepado não lhe saiu uma gota! então as pedras choveram durante um mês no lugar. poetas desesperados escreviam e se matavam. na casa de Vó Floripes, Luís, Jacundá e Getúlio morreram só de beber. Até hoje ninguém sabe quem matou o cara estranho que foi achado no rio, com a tez tirada à faca. perceba a nossa herança. a nossa pouca vergonha, nossa desordem astral, sempre humilhou a Cultura. eis o espanto dos sábios: “Desde o Piauhi, todo o sertão exportou víveres, carne de boi e de porco; toucinho,farinha sêcca e de puba, assucar, cachaça, tabaco, doces, queijos, gallinhas,ovos, bois vivos, porcos e vaccas paridas,até laranjas, aboboras e inhames para a phantastica e maravilhosa Marabá,surgida de repente como obra de magia na foz do escuro tio Tacai-una”. e a delícia que fomos!... “Marabá brotara da ganância do dinheiro; logo,totalmente alheia a qualquer preocupação religiosa e moral. Principiou sendo o que chamam currutela, nome bem significativo, empregado com muito acerto nas regiões de garimpos, e que não carece comentários (...) Algumas das pragas morais e sociais mais comuns Eram a mancebia e a poligamia, por meio sobretudo do casamento civil. Quantos desses seringueiros, castanheiros, esqueciam-se de suas famílias legítimas,E tentavam construir outro lar, servindo-se do contrato civil passado sem as menores garantias, perante funcionários sem conhecimentos jurídicos e sobretudo sem moral! Não se respeitava nem casamento religioso, nem contrato civil efetuados anteriormente em outros lugares”. mas não ficava só nisso... ouçamos a voz de outros: “Marabá” - palavra mágica: luminosa e sombria evocando contos fantásticos ou narrações de aventureiros. (...) Mas, que habitantes! Aventureiros arriscando a sorte, colhedores de castanha, que são também, conforme a sucessão das estações, caçadores de diamantes. (...) Em Marabá encontram-se todas as raças e todas as paixões. A prostituição aí é intensa. Os casais em absoluto não se conformam com as promessas definitivas sancionadas pela Igreja ou pela lei civil. A proporção de botequins bate sem dúvida o recorde do mundo: um, para cada 17 habitantes.” O nomadismo é inerente a essa raça: instabilidade inata, tanto do sertanejo como do garimpeiro, hoje aqui, amanhã acolá, com ou sem razão. Vontade de “ver o mundo”, desejo nunca satisfeito de melhorar de vida. (...) Essa instabilidade da população só pode prejudicar gravemente a humanização e a “civilização da cidade, pois, que interesse há em constituir uma família, em construir uma casa, em dar uma instrução séria às crianças, se a vida, hoje “arrumada” aqui, tiver de ser amanhã transportada acolá e, depois de amanhã, ainda alhures? ... Entremos numa dessas casas. Cuidado em não esbarrar logo na entrada, pois há no chão uma fileira de paus curtos enfiados na terra erguendo-se ameaçadores, tal qual dentes de ancinhos; servem, na ausência de porta, para interditar a entrada aos porcos da vizinhança (...) Tanto as paredes como de palha de uns dois metros de altura, que esboçam uma divisão da casa em cômodos, são recobertos de jornais. Esse revestimento, julgam os moradores, é muito mais bonito do que um leite de cal ou a simples palha trançada. “Só branco, não interessa”, disse-me um deles certa vez. Para passar o tempo, basta se aproximar da parede e ler o jornal. E, se não souber ler, pode-se ao menos olhar as gravuras. (...) (...) a rede é sempre individual. Mas ninguém sabe, de tarde, quantas pessoas irão dormir de noite na casa. Talvez somente a família: os homens de um lado do tabique e as mulheres do outro. Mas, muitas vezes, parentes e amigos que vêm do “centro do comércio” pedem para arranchar e ficam semanas, meses a fio. É a lei da hospitalidade. (...) Não seria luxo, é claro, consertar essas casas (na medida do possível), tapar os buracos das paredes, trocar a palha do teto, instalar uma mesa na cozinha? Mas, para quê?” Barruel velho de guerra num entendeu porra nenhuma! E que pensavam os barqueiros deste médio Tocantins? Eles cantavam, cantavam... Quem me dera eu vê hoje de quem m’alembrei agora quem eu trago no sentido retratado na memora vou mimbora, vou mimbora as águas vão me levano eu nem sei quem fica atrás mas meus zoios vão chorano acabou-se, acabou-se quem eu amava com firmeza cobriu o corpo de luto e o coração de tristeza vou mimbora, vou mimbora lá pra baixo, pro Pará, não chore por mim, morena, eu vou e torno a voltar rio abaixo, rio abaixo remando minha canoa encostando em todo porto ganhando coisa boa rio arriba, rio abaixo remando na montaria coisa que acho bunito canoa aqui leva Maria cantei onte, cantei hoje, querem que eu cante travez meu peito num é de aço nem foi ferreiro qui fez essa noite não drumi cuma marreca piano o marvado desse bicho é gente qui tá criano vou mimbora, vou mimbora de hoje tô m’aviano o cavalo que vou nele tá no mato si criano... ai, as súcias de outrora!... eu vi, meu mano, eu vi, eu vi o acamadô onde o Fonseca apanhou... quantos tiros deu na onça, Luizãlo? Dei um, dei dois, mas o bicho foi-se embora E p í l o g o então, meu mano, o mundo pegou de raiva com a gente: abriu a tranca do inferno tirou seus monstros de ferro cortou o verde das matas rasgou a casca do ovo e despejou nossa história. depois, os seus cavaleiros entraram portas a dentro cortaram nossos cabelos comeram nosso feijão botaram fogo na roça e semearam colonião. morreu quase todo bicho esvaiu-se todo encanto visagem caiu no mato - pernas, para que vos quero? – passarinho foi embora dizer pra onde não sei; só ficamos nós, coitados, presos no arame farpado bando de bois entre bois. calcule nossa tragédia. (Ademir Braz )

3 comentários:

Anônimo disse...

Ademir, li de uma talagada só. Que maravilha! Tá parece vinho: quanto mais velho melhor. Um grande abraço e muitas saudades.
Raimundo Pinto

Ademir Braz disse...

Meu caro RJosé:
a saudade de você também é grande e aumenta sempre porque não tenho tido oportunidade de ir à nossa Belém. Como vão você, mãe Irá e os demais, a sua família, o seu trabalho?
arranja uim tempo e vem cá! Eu descolo um sinuquinha e uns peixes na brasa pra gente atualizar o mundo.

Anônimo disse...

JÚLIO CÉSAR COSTA disse:

Desde os 14 - creio eu - que este poema é o meu favorito. Sempre pensei que quando tu o escreveste estava em completa iluminação, diretamente ligado com o Pai Universal. Quem imaginaria que toda esta questão de ecologia ia virar este modismo (mais um?), quando tu dizes "há um passáro em teu ombro...não destrua parceiro..."; e essa opinião é forte e motivada pela data embaixo do poema: dois dias de puro transe?
E a apresentação do LUCIO FLÁVIO falando da "lâmina afiada do capitalismo"( essa palavra: lâmina é outra vertigem), cortando nossa história e nossa região; área de segurança nacional; chico buarque; televisão; guerrilha do araguaia; peixe frito; cana pura; mojumaexto; violão; vitrola tocando roberto carlos; pipiras no quintal; o rio, o rio o rio o rio rio o rio rio... que época rapaz, que tempos!!! E o final dos bois entre bois e a estrada nos atravessando que persiste até hoje. Demir, tu estavas em transe quando escreveste isto: é a nossa estória condensada pelo poeta, pelo vate escolhido pelos deuses. Este poema é o poema que finalmente nos deu o conhecimento de que somos um povo, uma nação!!! Uma espécie especial de gente que deus colocou nesta peninsula mesopotâmica do sol!! Saudações Irmão!!! Saudações Sacerdote dessa ignota Terra!! Saudações Grande Médium, Santa Antena Poética da Amazônia!!! Nossa Igreja será um dia fundada e serás o Pontífice Máximo!! Guiarás nosso povo em busca de seu regogizo completo na volta à Mãe Terra ( à sempre sonhada Canãa)! Ao Grande Útero ( e também ao Úbere) Materno que é a TERRA; Esta Terra. O nosso catecismo será este poema: não o destrua parceiro, foge com eles minimo... O poema é a nossa resistência escrita a ferro e a fogo pelas mãos daquele que conhece o futuro, que antevê, que-tudo-vê; o Espírito que Anda, o moderno homero amazônico; o virgilio enclausurado nesse rincões amazônicos. O Pagão que é abençoado Salve, salve! EVÓE!!!!!!!!!!!!!
PS - caramba, escrevi tudo isso????
PS 2 - a hora fatal se aproxima!!!!
PS - 3 - deveria ser ensiando e reensinado nas escolas municipais. Quando os pretensiosos serão humildes e reconhecerão que apenas enxergam o próprio nariz ou o umbigo?
jcc