Pages

domingo, 18 de março de 2007

Belém revisitada

(Para R. José Pinto e Elias Pinto) Os prédios são antigos e seus inquilinos, muitos, precipitam-se diariamente elevador abaixo, mal amanhece. Vão caminhar ao largo das Docas, em bermudas, ensapatados, resfolegantes. Do oitavo andar levei manhãs olhando-os - formigas ao longo do canal insalubre. Há anos não via Belém assim: as notas desordenadas de seus prédios - altos e agudos, baixos e graves – dó ré mi fá sol lá sim fonia sem fim da baía ao brejal dos excluídos. Morei aqui uma vida e quase já nem a reconheço. Até hesitei em vir, afeito à faina rasa do sertão em que cultivo filhos e orquídeas. Dos amigos de outros tempos, se os encontro, ponho-me a redesenhar-lhes divertido o ar agora disfarçado em óculos de grau, cabelo enevoado e ar distante e severo; eles, eles não escondem o espanto ao ver em mim a odisséia da cerveja e da inércia. Se nada dizemos, sorrimos. Assim tecemos, num jogo, a seda de codificações que nos resgata da desmemória deste tempo presente e menos veloz. Um pacto secreto e não celebrado nos cala sobre o que fizemos dos sonhos. Pomos, entre parênteses, desde as lembranças comuns mais remotas até o instante que antecedeu este encontro. Tentamos ludibriar o tempo. E o que fizemos de nós, velamos sob casto silêncio. Então a cidade passa entre uivos, alheia e célere com sua juventude de desejo e músculos umbigos e piercings enquanto arriscamos um olhar discreto e dói no peito um suspiro profundo.

18 comentários:

Val-André Mutran  disse...

"Há anos não via Belém assim:
as notas desordenadas de seus prédios
- altos e agudos, baixos e graves –
dó ré mi fá sol lá sim
fonia sem fim
da baía ao brejal dos excluídos."
Essa é a Belém do Pará - apelidada New Deli - com muita propriedade pelo Mestre dos Mestres Juvêncio de Arruda. O mais paraense dos intelectuais - ao lado e rente ao paraíso - Lúcio Flávio, que Deus permitiu-me conhecer.
Parabéns amigo Ademir Bráz.
A cangalha é mais embaixo do que eles pensam.

Ademir Braz disse...

Caro Val:
O site ficou uma parada. Obrigado! Quanto a Belém, espanta-me acompanhar diariamente, pela imprensa, ver que a quantidade de prédios luxuosos cresce tão rapidamente quanto a violência e a invasão do centro pela miséria periférica. De Nova Deli para pior. E olha que a última vez que estive em Belém foi de passagem para Macapá em 2005, setembro...

Unknown disse...

Ademir, meu caro, obrigado pela visita durante o inal de semana em que estive ausente de Nova Déli.Claro que vou linkar o Quaradouro.Só peço uns dias pois não sei fazê-lo.Tenho que pedir aos filhos, que nem sempre estão disponíveis.Mas sai nesta semana...eheh.
Ainda não sei quando vou por aí, Brás, mas não demora muito não.Aviso antes.

Ei, Val-André, deixa disso...rs.

Abs aos dois "marabalenses".

Anônimo disse...

Ademir querido: não fosse pela nota do Juca e eu não saberia que vc está aqui, ao alcance do teclado, neste blog que agora será meu companheiro diário. Não chega a dar pra matar a saudade, mas alivia. E, não o vi ainda de cabelos enevoados e óculos de grau - eu os uso há tanto tempo que já não me reconheço sem eles! -mas , quanto a mim, o poeta e o companheiro de aprendizado sobre o outro lado do mundo, de 1977, vai se sobrepor sempre a qualquer novo "design" que a vida lhe tenha premiado...rsrsrs.. Beijo grande.
Adelina

PS: quanto aos cabelos enevoados, eu não os uso. Eles são escondidos permanentemente pela Henna!

Anônimo disse...

Ao
Poeta sucesso,aos enebriados do poder bem feito, chegou ao jornalismo on-line a linha mais indepedente hj no Brasil mais um abnegado e inteligente jornalista.
Marcio

Anônimo disse...

Ao
Poeta sucesso,aos enebriados do poder bem feito, chegou ao jornalismo on-line a linha mais indepedente hj no Brasil mais um abnegado e inteligente jornalista.
Marcio

JOSE MARIA disse...

Prezado Ademir Braz.

Parabéns pelo blog.

Já está no espinhel de meus favoritos.

Vida longa para você e seu Blog.

Quando puder, visite o Blog do Alencar (www.blogdoalencar.blogspot.com).

Abraços do

JOSÉ DE ALENCAR

Anônimo disse...

uma pergunta pro Val-andré mutram
quem são " eles" ?

Unknown disse...

Menino, ainda resisto em Belém. Fica tudo meio embotado às vezes. A gente sai limpando os olhos e tocando em frente.(Rita Braglia)

ESSE GRANDE SIMULACRO (Mário Benedetti)


Cada vez que nos dão lições de amnésia
como se nunca houvesse existido
os ardentes olhos da alma
ou os lábios da pena órfã
cada vez que nos dão aulas de amnésia
e nos obrigam a apagar
a embriaguez do sofrimento
convenço-me de que meu território
não é a ribalta de outros

Em meu território há martírios de ausência
resíduos de sucessos / subúrbios enlutados
mas também singelezas de rosa
pianos que arrancam lágrimas
cadáveres que ainda olham de seus hortos
lembranças imóveis em um poço de colheitas
sentimentos insuportavelmente atuais
que se negam a morrer no escuro

O esquecimento está tão cheio de memória
que às vezes não cabem as lembranças
e rancores precisam ser jogados pela borda.
No fundo o esquecimento é um grande simulacro.
Ninguém sabe nem pode - ainda que queira - esquecer
um grande simulacro, abarrotado de fantasmas.
Esses romeiros que peregrinam pelo esquecimento
como se fosse o caminho de Santiago.

O dia ou a noite em que o esquecimento estale,
estoure em pedaços ou crepite
as lembranças atrozes e as de maravilhamento,
quebrarão as trancas de fogo,
arrastarão, afinal, a verdade pelo mundo
e essa verdade será a de que não há esquecimento

Unknown disse...

Braz,vais ser cobrado em pinga pela mídia do Quinta...rsrs.
E só gente boa que veio, hein?

Ademir Braz disse...

"Eles" quem? Acho que o Val tá doido eheheh

Yúdice Andrade disse...

Parabéns pelo blog e, especialmente, pela postagem que retrata com tanto lirismo a minha cidade, inclusive as suas mazelas, hoje tão avolumadas. Sinceramente, senti até um aumentar de ternura por Belém.

Ademir Braz disse...

Caro Yúdice:
Grato pela visita. Quanto a Belém, ela sempre me enternece. Quando a conheci, andava-se por estivas no bairro do Jurunas, onde hoje florescem peças de concreto armado.No meio da várzea havia cordões de pássaros e tomávamos aguardente com guara-suco. Dançava-se muito nos arraiais. Hoje, parece-me, plastificaram a cultura e a confinaram, como a um pinguim de geladeira, aos espaços administrados pelo Estado. E como ainda tomar aguardente nos subúrbios saqueados por gangues e banhados em sangue?

Anônimo disse...

Caro Ademir,
Que bom vê-lo no espaço democrático da Internet.
Tua poesia é o reflexo do embate entre a cidade e o sertão.
Sortudos somos nós, que podemos sorver (de graça) o que jorra do teu peito.
Um grande abraço

Ronaldo Giusti

Ademir Braz disse...

Oi, Ronaldo!
Além de estímulos como o seu, tenho recebido apoio efetivo de amigos que me ajudaram - como o Val-André - a formatar este espaço. a meta é discutir tudo. Claro, sem despencar pro incabível eheheh
mande suas contribuições.
Abraços

Anônimo disse...

Salve! Saravá!
Recordo outras poeiras, estradas, de quando aquela doida caravana arrematou na frente do teu barraco numa desimaginada e insuspeitada Santa Isabel do Pará. Que fazias? Que fazíamos? Foi assim, de passagem. Existiu mesmo aquela noite regada a aguardente? Ah, lembrei agora de um cabra lá, entre os viajantes daquele bólido, que ainda se cumpriria vereador, deputado estadual, federal, uau. Reabastecidos, reembebecidos, tornamos a zarpar, cumprindo-nos na estrada, que, não sabíamos, era a própria estrada dita da vida, de volta ao futuro e já em busca do tempo perdido.
Quando outra vez?
Nevermore, crocita aquele corvo.
Irmãozinho Ademir, nego dito, aquele abraço e um beijo àquela noite imemorial.
Elias Ribeiro Pinto

Ademir Braz disse...

Caríssimo: sou seu leitor permanente e obrigado por este prazer em me dar de volta a Belém que passo anos sem revisitar, embora sem esquecê-la. Sinto uma falta danada dos clipers, da média com pão e leite, da piramutaba frita ou do ovo cozido junto com casca de cebola para ficar vermelho por fora como ovo caipira, ambos comidos ali, de pé, ancorados no balcão.
Tomei uma porrada quando, após anos de ausência, quase não consigo andar na Pres. Vargas entupida de camelô (um deles vendia peruca na ponta de um cabo de vassoura!) Que mal-entendido fizeram da administração de Belém?

Ademir Braz disse...

alice-no espelho:
estão construindo um cais monstruoso na beira do Tocantins, mas aquela casa de tábua e de calçada alta conbtinua no mesxmo lugar. E aquilo me enche da nostalgia de não ter migrado para arembepe nem para o araguaia.
Saudades