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quarta-feira, 13 de junho de 2007

Sopa de letrinhas

Convidado a intervir no seminário “A formação jurídica no contexto amazônico”, promovido pela comissão responsável pelo Novo Projeto Político Pedagógico do Curso de Direito da UFPA/Marabá, passei boa parte da tarde de terça-feira 12 de junho alinhavando uns dados para corroborar o que penso sobre o que seria prioridade, no sul do Pará, na área das ciências jurídicas. Não era muita coisa, nada além de uma sopa de letrinhas com informações que qualquer cidadão medianamente antenado com o entorno não tenha já tomado conhecimento. Eu estava, como sempre, mais predisposto a ouvir. Afinal, lá estariam, na mesa diretora dos trabalhos, o agrônomo e sociólogo Raimundo Gomes da Cruz Neto, fundador e integrante do Cepasp (Centro de Pesquisa e Assessoria Popular), conhecedor como poucos dos gargalos regionais; o presidente da Acim (Associação Comercial e Industrial de Marabá), Gilberto Leite, inteirado sobre os segmentos da economia regional, sobretudo mercado de veículos e a instigante temática da produção de ferro-gusa no Distrito Industrial; o Procurador Geral do Município, dr. Carlos Nunes, que seguramente expressaria o ponto-de-vista da administração Tião Miranda sobre o que espera seu governo da atuação da UFPA no município; e, por fim, a respeitável e douta figura do sacerdote e advogado Henry des Roziers, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), emérito defensor dos fracos e oprimidos camponeses do sul paraense. Deu-se, porém, que só eu apareci... Segundo o professor Júlio César Costa, integrante da comissão organizadora do evento, os demais convidados alegaram afazeres inadiáveis momentos antes do início do seminário, de sorte que eu, de ouvinte, passei a cozinheiro e servente da minha sopa de letrinhas, condição dificultada, aliás, pela falta de um microfone, o que me obrigou a falar alto para uma platéia de estudantes que não ocupava sequer um quarto do pequeno auditório do campus. Estudantes de Direito no campus contam-se hoje às centenas, eu acho, entre as variadas turmas, mas raríssimos manifestaram interesse pelo debate inicial que visa qualificar melhor o futuro profissional da Justiça. E os que compareceram saíram como entraram: em silêncio. Depois do encontro, alguém deu-me explicação prosaica: “Os futuros advogados estão mais interessados na aprovação para cargos públicos, (vitalícios, com pouco trabalho e sem muita exigência de saberes) do que para o exercício da profissão com prestígio em declínio cada vez mais.” Faz sentido. Inda mais vindo de quem veio, inserido no contexto, como se dizia nos anos 70. Mas, recado dado, observei que todos os fatos por aqui vivenciados interessam ao Direito Ambiental, Comercial, Agrário, do Consumidor, a todos os ramos vinculados à defesa da cidadania e do direito constitucional ao meio ambiente e à vida humana com qualidade, talvez “não necessariamente ao Direito Tributário, em razão das isenções tarifárias que beneficiam o grande capital e da inequívoca e violenta sonegação de impostos.” Quer provar da sopa? Em 1988, os antropólogos Eduardo Viveiros de Castro e Lúcia Andrade publicaram um livro As hidroelétricas do Xingu e os povos indígenas onde um artigo aborda a política ambiental do Estado brasileiro como um aparelho de despolitização do ambiente, a partir de uma ofensiva ideológica que visa a facilitação política de implantação de grandes projetos na Amazônia. Sob esse prisma, ponderam os autores, a noção de impacto ambiental esconde sob sua aparente inocência e preocupação positiva um conjunto de operações ideológicas, assim resumidas: 1) A obra de engenharia aparece como causa absoluta, cuja concepção é subtraída a qualquer exame. Ela se transforma em verdadeira instância transcendental, fato consumado a que só cabe reagir, adaptar-se, aceitar como se aceita um desígnio divino e insondável: a barragem se transforma em obra do destino. 2) As populações humanas “impactadas” são concebidas como parte do ambiente da obra, que é sujeito; elas são subsumidas numa função de fundo para uma forma extrínseca, superimposta. Elas são naturalizadas, assimiladas a espécies naturais submetidas a “impactos negativos” e a manejo paliativo ou “desenvolvimentista”; são “melhoradas”. Erguem-se, assim, duas entidades fantasmáticas em confronto: o Estado, agente e causa; a natureza, paciente e reativa. A engenharia de barragens vira engenharia social. 3) A dimensão política intrínseca aos processos de concepção, decisão e execução de um empreendimento de engenharia é escamoteada. O estado, autor da obra, é falsamente identificado como a “sociedade” brasileira abstrata, e as sociedades concretas são postas como objetos para o Estado. A obra, enfim, é passada como catástrofe (ou, como preferem os planejadores, milagre) natural, acontecimento que se gesta e se gere fora do alcance da vontade política da sociedade, em particular dos setores sociais “afetados”. Desta forma, o discurso sobre os “impactos ambientais” presta-se facilmente ao mascaramento de formas de dominação política, cujos efeitos não são simples ou principalmente ambientais ou sócio-econômicos. Eles são essencialmente políticos, por resultarem de uma vontade de dominação que nega às populações humanas visadas seu lugar de sujeitos de direitos, isto é, de cidadãos dotados de uma positividade política. A partir disso, qualquer semelhança com deidades do tipo Vale do Rio Doce, Eletrobrás, Albrás-Alunorte e outras “engenharias” dominantes na Amazônia, de natureza igualmente divina, não será mera coincidência. Até porque, na lógica do capitalismo, é necessário destruir a natureza para então transformá-la em mercadoria. Para além das engenharias divinatórias, ou supra-humanas, a contemporaneidade amazônica inclui uma questão premente: os deslocamentos humanos, responsáveis pelo forte crescimento populacional. São levas de migrantes que, impossibilitados de se fixarem nas suas regiões de origem, vêm em busca de atividades supostamente capazes de satisfazer demandas por terra, expectativas de melhoria de condições de vida, trabalho, até mesmo de enriquecimento – numa região propagandeada como de grande potencial de recursos naturais. Assim, a posse e uso da terra marcam profundamente o processo de ocupação na área e, consequentemente, as transformações econômicas na região. Na área de influência da Estrada de Ferro Carajás, espaço de atuação do Campus da Universidade Federal do Pará, a política de incentivos fiscais e creditícios favoreceu a implantação de grandes projetos agropecuários e madeireiros, em sua grande parte intensivos nos fatores capital e terra, e poupadores de mão-de-obra. As indústrias siderúrgicas dos Distritos Industriais de Marabá, no Pará, e Açailândia, no Maranhão, produzem anualmente dois ou mais milhões de toneladas de ferro gusa exclusivamente para exportação, e faturaram, em 2006, mais de meio bilhão de dólares. Em contra-partida, as empresas da cadeia de produção de ferro-gusa, que utilizam carvão vegetal, deverão ser obrigadas a reparar os danos ambientais causados pela atividade e ainda pagar indenização por danos material e moral coletivos causados ao meio ambiente. Só em Marabá, os promotores de Justiça já impetraram 115 ações civis públicas (ACPs) contra madeireiras, serrarias e siderúrgicas que atuam na região, acusadas de agressão ambiental. Também foram incluídos nos processos pessoas físicas flagradas transportando madeira ilegal ou carvão vegetal produzido a partir da derrubada ilegal de árvores. Apesar de tudo, “a região sudeste do Pará já responde por um terço da economia do Estado e, no ritmo atual de crescimento, deverá ultrapassar em breve a região metropoliana de Belém. Enquanto em 1980 o sudeste respondia por 12% do Produto Interno Bruto (PIB) estadual, essa participação subiu para 32% em 2004, enquanto a da capital caiu de 48% para 40% na mesma comparação. Também registraram queda de participação as regiões do Nordeste Paraense (de 17% para 11%), do Baixo Amazonas (de 15% para 8%) e do Marajó (de 5% para 3%). O Sudoeste Paraense cresceu de 3% para 6%. “ Este é um dos principais dados constantes do Diagnóstico Integrado em Socioeconomia para os Empreendimentos da CVRD no Sudeste do Pará, contratado pela Fundação Vale do Rio Doce e realizado pela Diagonal Urbana Consultoria ao longo de 2006. O estudo mostra que os investimentos que a Companhia Vale do Rio Doce tem feito na região (R$ 12,3 bilhões até 2007, com projeção para chegar a R$ 25,8 bilhões até 2010) e as suas compras (R$ 8,2 bilhões até este ano, devendo chegar a R$ 12,6 bilhões em 2010) tornam o papel da empresa fundamental na dinamização da economia regional. Outro dado que revela o melhor desempenho do Sudeste Paraense é que o PIB per capita da região atingiu R$ 6.765 em 2003, enquanto em Belém estava em R$ 5.137 e o total do Pará em R$ 4.367. Se for levado em consideração apenas o PIB per capita dos municípios da área de influência direta da Vale, o valor foi de R$ 7.272 em 2003. O PIB do Baixo Amazonas estava em R$ 3.897 naquele ano, o do Sudoeste Paraense em R$ 3.814, o do Nordeste Paraense em R$ 2.202 e o do Marajó em R$ 2.112. Vale indagar, porém, onde anda a parte desse produto Interno Bruto que não chega ao bolso do cidadão comum. Evidentemente, todos esses fatos interessam ao Direito Ambiental, Comercial, Agrário, do Consumidor, a todos os ramos vinculados à defesa da cidadania e do direito constitucional ao meio ambiente e à vida humana com qualidade, talvez “não necessariamente ao Direito Tributário, em razão das isenções tarifárias que beneficiam o grande capital e da inequívoca e violenta sonegação de impostos.”

4 comentários:

Yúdice Andrade disse...

Lamento, meu caro, que as coisas tenham se passado desse modo. É uma lástima quando eventos dos quais se poderiam extrair grandes utilidades são alvo de descaso generalizado. Impressionante como podem os convidados, simplesmente, não aparecer.
Quanto aos alunos, essa postura inerte é muito comum. Acredito que na capital o vício seja um pouco menor, pois as maiores dificuldades que os estudantes têm, no interior, devem fomentar neles um maior utilitarismo. Seja como for, não justifica.
Por fim, não desmereças a tua "sopa". Para a maioria das pessoas, o que ali comparece é novidade. E sempre permite uma boa reflexão.
Parabéns por aceitar o desafio de, subitamente, deixar a assistência para entrar na cozinha. E mesmo com tanto desprestígio ao evento, ainda servir aos presentes uma refeição de qualidade. Minha solidariedade.

Ademir Braz disse...

Caro Randol:
Estou convencido que amaior decepção tiveram os organizadores do evento, apanhados de surpresa até com o sistema de som, do auditório, que não existiu.
Nos textos postados, não reclamo - só constato. Constato a mesma precariedade estrutural com que nos defrontamos como turma pioneira de Direito, em 1994, dentro de um campus que desde 1986 era todo voltado para a qualificação de professores de segundo grau.
Se posso dizer, foram anos heróicos. De luta, inclusive, contra a a coordenação do campus, que não conseguiu nos cooptar para a militância político-partidária e fez de tudo para nos prejudicar - desde pedir a anulação de aulas (fora do campus cedido para feiras de ciências de 2º grau) até invadir a única sala de Direito porque não se aderiu às greves sem fundamento de então.
Fomos, vimos e vencemos. Depois, com a sobrevivência do curso, as coisas foram caindo no lugar comum, até esta miserável situação de desinteresse dos estudantes de Direito por qualquer coisa que cheire a raciocínio.

Yúdice Andrade disse...

Que falta faz uma causa por que lutar! E olha que pertenço à geração nascida durante a ditadura braba, mas que ao tomar consciência de si já receeu um mundo mais normalzinho.
Espero que as coisas por aí melhorem. Para tanto, é persistir na luta.

Ademir Braz disse...

É verdade, bom amigo. Curiosamente o que não nos faltam nesta região sáo bandeiras de luta: trabalho escravo, degradação ambiental, exclusão social, emancipação (sim, por que não? Temos o direito de errar... ou, quem sabe, o troço dá certo!), luta pela terra no campo e na cidade, saneamento básico, latifundios, corrupção, más administrações públicas - e por aí vai. Seara imensa para advogados com consciência crítica e compromisso social.
Mas é esse o nó górdio: os cursos de Direito não contêm conteúdo ideológico outro além o de convalidar o sistema político, econômico e social excludente.
Nos anos 80 li muito sobre o Direito alternativo e os experimentos do gaúcho Cleverson Merlin Clèves; as organizações populares que acabaram inventando "o direito achado nas ruas" e sonhei com alegres possibilidades de modificação da sociedade.
Constato, agora, que o que temos é uma enorme contradição na universidade: à medida em que melhoram os cursos e os recursos tecnológicos,dá-se uma enorme perda na qualidade humana da sua clientela. Ninguém lê hoje, nem orelha de livro!...
As causas podem ser rastreadas, né, a proletarização da classe média, a concentração da riqueza etc. Mas, puxa, eu não creio que isso tudo justifique. Na minha família, eu e meus dois irmãos somos filhos de castanheiro e lavadeira, e nem por isso nos tornamos juquireiros (com o devido respeito por esses trabalhadores).
Não dá para entender. Ainda.