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terça-feira, 5 de julho de 2011

O poético necessário

Idos amores   
                                                          Ademir Braz

espelho me devolve a barba de vários dias:
umas cerdas brancas, duras, de velho cuandu.
Deve ser esse fascínio dos 600 anos... Para onde
fluíram em maciez e furor as antigas manhãs?
Onde as noites nevadas de espumaOnde
espanto de fardos e fados rarefeitos, verbo
em sangue no guardanapo dos botequins?

O cuandu ri no espelho... Envelhecer é isto?
Esse tumulto com os signoseste enorme,
colossal desapego à posse do supérfluo?
Que é o essencialquando tudo esvaiu-se?
Ainda gosto de árvoresternura e afagos;
de cães sarnentos e gatos de becoTrago n’alma
enseada morna que os abriga e aos amigos.
Grandespor igualsão minhas amarras às coisas
que sejam pássarosmarplantas e silêncio.

Dessas coisas claras, certifico. Mas o que faço
das lembranças, tumultuárias buganvílias?

Os amores, comparo-os às tainhas de Maiandeua.
Quando as vi, na vez primeira, pareciam milhares
saltar entre a praia do porto e o manguezal.
Se o tempo as trazia, em época exata de chuva e sol,
fervilhava o mar sob redes e barco, e  pescadores
colhiam mais cardumes que poderiam consumir
ou vender e quemortos, relançados às marés,
prateavam de escama a fímbria macia do areal.
Tanto o desperdício quenão muito depois,
rarearam até sumir ao longe na costa do Marajó.

(As tainhas que amei, também migraram. Foram
acasalar  bem longe da minha rede de pescador.)

Esses idos amorescontudo, conservo todos aqui
(ainda que tenham durado a sina de uma rosa)...

muito amada sentou-se no muro e por trás dela
eu via a luz da casa com o brilho velado da vidraça.
Era um lugar de nome indígena, algo quase assim:
muito amada vinha do colégio e eu, de muito longe:
da terra mesopotâmica do sol, a mochila encardida
do  que o vento espalha ao norte dos agrestes.
 nos conhecemos, vivíamos,  um bêbado amou-a
com amor que o fez perder-se dos parceiros de balcão.
Mas ela mudou-se e fui revê-la num insano impulso
e dei com esse vento de soturna lágrima e adeus.
Penso às vezes que morri naquela noite de pétalas
e transmutei-me em pássaro sem abrigo ou canto
desde então peregrinei sem causa à parte alguma.
Sim, é quase certo que morri naquela noite de pétalas...

Em Romana, andávamos nus, a companheira
espiar navios feéricos sobre o verde mar.
Tão distantes e misteriosos!... À noiteapenas
vela acesa na curva imaginária do horizonte
enquanto nos amávamos sobre palafitas.

Na cidade de cal, perdida no silêncio do cerrado,
namorada levou seu visitante a um lugar estranho
- o centro geodésico de alguma coisa – onde havia
uma placaseixo sem valor e um círculo cimentado
para receber alienígenas e discos voadores.
, sentamo-nos na grama e não vi luzes na manhã.
Trouxe no bornal - e ainda deve estar  nalguma parte -
um punhado de cascalho sujo e mítico, talvez resto
do que fora  abissal rochedo de  oceano profundo.

Eu olhava a luz a crepitar na chuva da madrugada.
Bebia aguardente e cerveja no bar soturno ( o dono
atrás do balcão) e olhava a luz imunda na rua insone.
Eu era  um artista sem certezas e a cidade, um pássaro
morto sob a chuvaEsse vulto em brancoentretanto,
está bem vivo e úmido à porta, os seios de romã, a face
alada do arcanjo que vai levar-me a qualquer parte.
Alva e transparente no vestido longoela pede vodka
solta o corpo esguio numa cadeira mais ao longe.
Ergo-me e dou a mão ao fado inscrito na noite suja.
Então ela canta, e me dou conta que morrerei esta noite,
fugiremos para as estrelas acima da tempestaderumo
às galáxias e outros sóis. Nunca mais voltarei! Mas antes
de largar-me quase morto à margem do trago e das taças,
três dias nos amamos entre  cachoeira e saranzais.

Um comentário:

Plínio Pinheiro Neto disse...

Caro amigo e colega.

Tuas lembranças são substanciais e maravilhosas, pois teus pés andaram por muitos caminhos e o teu coração de poeta abriu-se para muitos amores.Tens muitas histórias a contar e sabes contá-las com a beleza poética que poucos sabem manusear, porisso, mesmo quando falas de tristeza a beleza sobressai e o triste não fica tão triste.Saint Exupéry que muitos só conhecem pelo "Pequeno Príncipe" tinha uma alma inquieta e questionadora como a tua e em seu livro Terra dos Homens escreveu o seguinte:“ Nada vale o tesouro de tantas recordações comuns, de tantas horas más vividas juntos, de tantas desavenças, de tantas reconciliações, de tantos impulsos afetivos. Não se reconstroem essas amizades. Seria inútil plantar um carvalho, na esperança de ter, em breve, o abrigo de suas folhas, assim vai a vida. A principio enriquecemos; plantamos durante anos, mas os anos chegam, em que o tempo destrói esse trabalho, arranca essas arvores. Um a um, os companheiros nos retiram sua sombra. E aos nossos lutos mistura-se a mágoa secreta de envelhecer.” (Saint Exupéry - Terra dos Homens)

Na verdade o tempo flui e nada pode detê-lo e a nós só nos resta acompanhá-lo da melhor maneira possível, amoldando-nos a ele e às estranhezas físicas e mentais que traz.É bom ver-te mais maduro, como o vinho, melhorando o teu interior a cada dia que passa e sendo sempre o Ademir autentico que não trai os seus principios em troca de nada.Para muitos pode ser dificil entender-te, mas os que te conhecem melhor, te entendem e apreciam assim como és.Que DEUS te abençoe ao longo da vida e, sobretudo, neste outono que avança sobre ti na flor dos 15 anos vezes 4.
Um abraço do amigo e colega.

Plinio Pinheiro Neto