Humorista e escritor morreu no dia 28 de março, aos 88 anos |
Millôr, na verdade, deveria ter sido Milton. O nome desejado
pela mãe e o pai foi escrito errado na certidão de nascimento: onde deveria
estar Milton, lia-se “Millôr” (o corte da letra “t” confundia-se com um acento
circunflexo, e o “n” com um “r”). Décadas mais tarde, lançou um livro inteiro
apenas com variações visuais em torno de sua assinatura. O livro, claro, era
uma forma de questionar sua própria trajetória pela condição do próprio nome.
Afinal, o que há num nome? Millôr teria sido um artista completamente diferente
não fosse o erro do escrivão?
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Rio
Talvez um convencional “Milton Fernandes” não tivesse o
senso de humor perplexo de um nome estranho como Millôr, aquele crítico mordaz,
ao mesmo tempo, incisivo e intrigante, que a gente nunca sabia se atirava para
a direita ou para esquerda. Mesmo em épocas de simplismos ideológicos, nas
quais cada um brigava em seu campo, o independente Millôr nunca se deixou levar
por proselitismos – enquanto um Milton talvez não tivesse resistido à tentação.
Na verdade, em vez de tomar partidos, Millôr sabia das
dificuldades em exercer a liberdade individual num mundo onde todos vivem como
cães adestrados, que se matam sem razão por slogans ilusórios. “Democracia é
quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim”, dizia um de seus
aforismos mais famosos. No fundo, somos todos impotentes diante de nossas
prisões. A única forma de libertação se dá pelo absurdo do humor, a capacidade
do ser humano em brincar com sua própria condição.
“Sempre vivi, continuo vivendo, e espero viver sempre sob
ditadura com suas várias grifes. É muito divertido”, disse ele certa vez.
Millôr, no entanto, não era o que se podia chamar de
niilista, amargurado ou descrente (“Acreditar que não acreditamos em nada é
crer na crença do descrer”, dizia outro famoso aforismo). Sua crença era no
humor, mas não qualquer humor – um humor movediço, cheio de curvas,
escorregadio como um peixe que sempre escapa de nossas mãos. Um humor “Millôr”.
Bendito escrivão! (Opinião e Notícia)
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Poema enviado pelo jornalista Léo Gomes:
Poeminha Última Vontade
Enterrem
meu corpo em qualquer lugar.
Que
não seja, porém, um cemitério.
De
preferência, mata;
Na
Gávea, na Tijuca, em Jacarepaguá.
Na
tumba, em letras fundas,
Que
o tempo não destrua,
Meu
nome gravado claramente.
De
modo que, um dia,
Um
casal desgarrado
Em
busca de sossego
Ou
de saciedade solitária,
Me
descubra entre folhas,
Detritos
vegetais,
Cheiros
de bichos mortos
(Como
eu).
E,
como uma longa árvore desgalhada
Levantou
um pouco a laje do meu túmulo
Com
a raiz poderosa,
Haja
a vaga impressão
De
que não estou na morada.
Não
sairei, prometo.
Estarei
fenecendo normalmente
Em
meu canteiro final.
E o
casal repetirá meu nome,
Sem
saber quem eu fui,
E
se irá embora,
Preso
à angústia infinita
Do
ser e do não ser.
Sol
e chuva ocasionais,
Estes
sim, imortais.
Até
que um dia, de mim caia a semente
De
onde há de brotar a flor
Que
eu peço que se chame
Papáverum
Millôr
Millôr
Fernandes – 1.6.1992
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