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sábado, 23 de fevereiro de 2013

Na Amazônia,o mundo às avessas e a vitória do irracional

No Manuel Dutra: 


Literalmente era o boss fazendo o que ele sempre fez na Amazônia: odelivery de suas riquezas em detrimento de quem, na outra margem, buscava a caridade de passageiros habituais e de turistas.
Fotos: M. Dutra
Transamazônica, há 15 dias, trecho entre Rurópolis e Itaituba. Eternamente inacabada, fruto de um projeto estúpido, caro e que não promoverá o desenvolvimento da região

Belém é quase uma ilha, historicamente chamada de Portão da Amazônia. A cidade tem à sua frente o enorme aguaceiro da Baía do Guajará; ao lado, os imponentes Guamá e o Rio Pará, e a malha urbana é cortada por vários igarapés e rios. E mesmo assim não existe transporte de massa por via aquática. As empresas de ônibus determinam que 85% de suas linhas entupam o centro da cidade, transitando por três avenidas prioritárias: Governador José Malcher, Nazaré e Gentil Bittencourt. O movimento de passageiros e o conforto da Estação Rodoviária da capital contrastam com a lástima que são os seus portos fluviais.
As centenas de pontes esperam a terraplenagem para se conectarem à estrada. Pela  dimensão destas estruturas, percebe-se que a Transam e a BR-163 esperam carga pesada

Marabá e Tucuruí são os exemplos acabados de cidades que deixaram de ser ribeirinhas, abandonando a sua vocação amazônica para se tornarem cidades rodoviárias. Estações de passageiros vistosas indicam que o eixo da economia e das relações sociais virou de costas para os rios.

Em Santarém uma estação rodoviária foi construída há quase 40 anos, mas até hoje 90% da economia daquela região navegam sobre os rios, e naquela cidade inexiste sequer um porto decente para embarque e desembarque dos milhares de passageiros que todos os dias chegam e saem nos pequenos navios e barcos menores.
Carretas geminadas já são frequentes na rodovia, levando soja para o porto da Cargill, em Santarém

No aspecto mais amplo, as últimas quatro décadas viram a consagração oficial da supremacia do caminhão sobre o barco, embora a Amazônia continue até hoje a nos ensinar que a sua vocação é ribeirinha, que o Rio Amazonas é a maior e melhor estrada líquida do planeta e que os seus afluentes, imensos também, continuam a ser as vias mais adequadas para o vaivém da economia e da cultura regionais.

Nada contra as rodovias. O erro, grave, foi ter-lhes dado prioridade, fruto de recorrentes planos de “ocupação” da Amazônia, concebidos lá nos centros do poder nacional, ignorante das particularidades desta região e de suas potencialidades. Integrar a Amazônia pelo caminhão foi talvez o erro mais caro já cometido pelo poder nacional, o que contribuiu em muito para a estratosférica dívida de 200 bilhões de dólares à banca internacional, herança dos governos militares, afinal sanada no governo Lula.
Esta é a BR-163, a Santarém-Cuiabá. Mas este trecho é ilusório, pois logo ali,na frente,  acaba o asfalto. Engenharia esquisita, que asfalta em espaços intermitentes, faz anos.

A Rússia conectou a imensa Sibéria ao território nacional por via do trem. Na Amazônia brasileira as rodovias, em vez de prioritárias, deveriam fazer parte de um projeto racional que levasse em conta os cursos dos grandes rios, e que seriam rodovias de curto e médio alcance a fim de conectar os principais portos fluviais aos eixos econômicos do interior da região. Uma linha férrea, como eixo terrestre de traçado e direção menos estúpida do que são a Transamazônica e a Santarém-Cuiabá, completaria o circuito barco-caminhão-trem.

Estradas paralelas
A estupidez foi tamanha que começaram a construir outra estrada quase paralela ao Rio Amazonas, a Perimetral Norte, pela margem esquerda, e que não foi terminada, tendo sido paralisada dentro da reserva dos Waiãpi, no norte do Amapá.
Se esse plano irracional tivesse sido levado a cabo, como desejaram os militares, o Amazonas teria hoje duas grandes rodovias quase paralelas ao rio. Aliás, isso faz lembrar outra irracionalidade bem atual, que a é projetada ferrovia da soja, paralela à Santarém-Cuiabá, saindo do Mato Grosso em direção ao Pará, devendo chegar ao porto de Santarém para que ali o trem despeje a soja em direção sobretudo à faminta e gulosa China.
Esta é a Transam, no trecho comum com a BR-163, entre a cidade de Rurópolis e o porto de Miritituba, em Itaituba. a mesma coisa, depois deste trecho asfaltado, recomeçam a lama, a poeira e os buracos

Os mais antigos parece que eram mais racionais quando, pelo meado do século 19, a mando de Pedro II, o Imperial Corpo de Engenharia teve a ideia de projetar uma ferrovia para conectar o centro do Brasil ao coração da bacia amazônica, justamente o projeto que, mais de um século e meio depois, se transformou na BR-163. E, pelo que se lê nos registros históricos, não se tratava de um projeto imediatista, em torno de uma ideologia (a da segurança, dos militares) ou de um produto (a soja, de hoje). Era um projeto de País, do qual os aspectos econômicos eram integrantes.

Indução ao desevolvimento?
Viajar pelo interior da Amazônia, especificamente pelo Pará, nos ensina o quanto de irracionalidade se comete nesta região, em relação sobretudo aos investimentos públicos, aqueles que deveriam ser os tais indutores do desenvolvimento.
Porto de Santarém: 90% da economia giram por aqui, mas este setor é esquecido por todas as instâncias de governo. A  prioridade são as rodovias, para alegria da indústria automobilística e atraso da Amazônia

Quem sai de Belém, de navio, em direção a Manaus, ficará estupefato ao presenciar, logo à saída do complexo do Marajó, milhares de mulheres com crianças nos braços, remando minúsculas igarités, em volta das embarcações que passam ou encostam em Breves, por exemplo. Pedem esmola às centenas. A última vez que por lá passei, indo de Belém para Santarém, conferi 882 pequenas canoas com mulheres e crianças com as mãos estendidas, mendigando! Como isto já faz uns anos, não posso hoje afirmar que ainda seja nessa proporção. Porém a cena dantesca eu presenciei há menos de 8 anos, portanto já se podia fazer um paralelo desta situação com a entronização da economia das estradas.
O porto da Cargill, em Santarém. Bem equipado e, dependendo da época, funcionando 24 horas. Verdadeiro porto chinês, conectado ao projeto da ferrovia. Imediatismo antinacional em torno de um produto, e não de um projeto de país
      Na rua da frente, em Breves, uma lanchonete se chamava “Boss”, e logo abaixo estava escrito “Delivery”. Estas palavras escritas na língua do poder globalizado se materializavam no outro lado do rio, que se chama Estreito de Breves. Ali havia duas serrarias, diante das quais um navio inglês com bandeira panamenha sugava madeira serrada em forma de pranchas e tábuas. Literalmente era o boss fazendo o que ele sempre fez na Amazônia, odelivery de suas riquezas em detrimento de quem, na outra margem, busca a caridade de passageiros habituais e de turistas.

Frango congelado
Outro sinal da priorização da economia rodoviária é o fato de que, nas viagens fluviais, os passageiros observaram o desembarque, nas cidades intermediárias, de caixas de ovos, frango congelado e, pasme-se, até de sacos de farinha de mandioca. Uma espécie de empobrecimento dos ribeirinhos, historicamente esquecidos.

A lista das incongruências é longa, até porque a estupidez histórica e contemporânea é parte essencial do projeto do Brasil e do mundo globalizado para com a esta região. As diferenciações entre a realidade vocacional da Amazônia e a realidade priorizada, não ribeirinha, podem ser exemplificadas com a comparação entre o conforto relativo dos ônibus interestaduais (há um ano viajei pelo sudeste paraense) e a desgraça sem qualificação que é o interior das embarcações que transportam a massa da população pelos rios.

Agora, na semana do carnaval, retornei, depois de muitos anos, à Transamazônica e Santarém-Cuiabá. Não fui propriamente motivado por ver as estradas, mas por elas passei em direção a Itaituba, com a intenção de ver mais de perto os efeitos da garimpagem que, nos últimos dois anos, retorna ao vale do Tapajós, com muito mais força e tecnologias mais devastadoras do que se verificou há 25 anos.

Vi o irracional de um asfaltamento que se constrói aos pedaços. Trafega-se numa e noutra rodovia ora sobre o asfalto, ora sobre o chão batido e esburacado, ora poeirento, ora enlameado. Vi dezenas de pontes construídas à espera da terraplenagem que as conectará à rodovia. Vi carretas geminadas cheias de grãos de soja, vi e fotografei estruturas de pontes que, pelas suas dimensões e pelos materiais empregados, revelam que aquela rodovia está em projeto (há quase meio século) para ser caminho de carga pesada.

O mais caro é “melhor”
Assim, escolhe-se o meio mais caro para o transporte de carga justamente numa região que, pelas suas dimensões físicas e pela abundância de meios de transporte naturais, poderia ser exemplo contrário, de busca de um desenvolvimento menos imediatista, mais humano e com alguma esperança de um futuro diferente deste presente e daquele passado.

Todas essas visões nos dão a impressão de um mundo projetado às avessas, a vitória do irracional sobre a razão. A Amazônia a caminho do que sempre foi: nada para os amazônidas e todos os que aqui vivem e trabalham; e tudo para os planejadores que a enxergam lá de longe e abrem os caminhos para os eternos aventureiros aqui chegarem, enriquecerem e caírem fora, deixando atrás de si o rastro da destruição dos recursos naturais e do desprezo pela sua gente.

4 comentários:

Anônimo disse...

No Maranhão e Tocantins o licenciamento anual de veículos custa cerca de R$ 45,00. Bom, alguém pode dizer que essa diferença de preço é por causa da pobreza dos dois estados. Tudo bem. Então vamos para Minas Gerais, um estado rico, onde o licenciamento custa cerca de R$ 35,00. Não conheço as estradas de Minas Gerais, mas as do Tocantins e Maranhão, vez por outra, trafego por elas, o que me permite dizer que são enormes as diferenças daquelas estradas para as do Pará, estado rico.

Aqui perto de Marabá logo após o município de Palestina temos cerca de 20 km de estrada de chão, ainda do governo Almir Gabriel.

Diante disso fica a certeza que o problema não está no tamanho nem no dinheiro, mas nos políticos que temos elegido. Cadê nossos deputados estaduais eleitos nessa região, e a AMAT, para defender nossos interesses? O que eles fizeram pela melhoria das estradas desse estado e região? Nada! Absolutamente nada. Depois ficam no bitolando as pessoas, de que a região sendo emancipada vai melhorar, que quem atrasa essa região são os também incompetentes e omissos políticos do outro lado. São esses mesmos que defendem a criação do estado de Carajás que estão há décadas de posse de mandatos e nada têm feito por essa região. Se fizerem alguma coisa, ficou com eles.

Tivemos agora uma eleição na AMAT. O prefeito de Marabá perdeu a disputa. Após a derrota ele ameaçou abandonar a AMAT, pois segundo o mesmo ela é uma entidade inútil e cara. Antes do fiasco das eleições a AMAT era interessante. O valor que o município de Marabá paga para ser sócio dessa entidade só veio à tona por causa do viés da eleição na AMAT.

Mas a culpa não é só deles, é também da grande maioria da população que os elege. Alguns em troca de alguns trocados, outros em troca de emprego nalguma repartição pública. Até na eleição da AMAT houve denúncia de compra de votos.

No fim das contas, nós merecemos nossos governantes, seja aqui ou no resto do país.
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Adir Castro

Anônimo disse...

Esqueci de dizer que o licenciamento de veículo no Pará custa cerca de R$ 145,00... Sem direito a estradas.
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Adir Castro

Anônimo disse...

Caro Ademir, complementando o exposto no "Manuel Dutra", aí vai ALPA/HIDROVIA TOCANTINS ARAGUAIA : Muitos dos que, na década de 60, falavam das enormes possibilidades do aproveitamento aqua-viário como meio de transporte e tambem comercial(Araguaia/Tocantins), já não estão entre nós. Eles falavam e insistiam muito aos "empolgados" da época, pelo transporte rodoviario. Lembro bem dos "slogans" tipo "Amazônia, integrar para não entregar", "Brasil, ame-o ou deixe-o" etc... Criou-se/fez-se a Belém/Brasília e mais tarde a Transamazônica(até hoje inacabada). O caminho certo - e quão certo eles estavam - foi indicado, porém, não encontrou eco. O tempo passou e a dura realidade está apresentando e cobrando a conta, aliás, caríssima. Não há mais saída para este país que não seja a de reconhecer e reencontrar suas potencialidades usando nossos múltiplos rios. Ou se resolve de vez por todas, os enormes gargalos logísticos e de integração, ou iremos, inexoravelmente, para o "abraço do urso", e, neste específico ponto, "governar não é apenas ficar torcendo para que os asiáticos(China e outros), não arrefeçam seu crescimento". Ainda há espaço e tempo hábil, para tomadas de decisões, e o aproveitamento das hidrovias, que reduzem o custo do transporte, sem comparação com as rodovias(sempre esburacadas/mal sinalizadas/não recuperadas), e mesmo com as ferrovias, permitirá ao país aumentar substancialmente, seu poder de competitividade no mercado externo, principalmente na área de alimentos. Quanto ao principal concorrente(EUA), eles não tem mais o que "enxugar" no custo da logística, pois usam há 200 anos as mesmas ferrovias integradas com as hidrovias dos Rios Mississipi/Missouri. E no campo(Agricultura) nosso país detem 11% a mais de produtividade por hectare, sendo que no caminho até o porto jogamos fora/perdemos quase 10% causados pela ineficiencia do transporte, e acrescemos 40% no custo, pela perversa logística dos caminhões. Acima do Paralelo 16 (Barra do Çarça-MT), chamado Portal da Amazônia) todo o caminho dos grãos deveria seguir para o denominado Arco Norte, mas não há capacidade portuaria instalada para uma demanda de 50 milhões de toneladas. Sòmente 10% da produção do Centro-Oeste segue pelos caminhos nortistas(Santarém-PA e Itacoatiara-AM), mas por um cami8nho tortuoso e longo que inclui rodovias até Porto Velho-RO, seguindo pelo Rio Madeira até os citados municípios. E mesmo a BR-163, não teria condições de dar vazão à demanda reprimida, ainda que se invista em capacidade portuaria em Santarem. Por isso, já surgem alternativas como o Porto de Santana-AP, vias balsas saindo de Miritituba-PA. Os Projetos do TEGRAN(Terminal Graneleiro) de São Luís-MA(15 mil ton.)e TERGRAN, no Outeiro(18 mil ton.) poderiam gerar alternativas, e, neste ponto, a integração da Ferrovia Norte-Sul com Marabá e o uso do Rio Tocantins, seria mais interessante para o escoamento dos grãos da região do MAPITO(Maranhão/Piauí/Tocantins). Toda a discussão relacionada ao Pedral do Lourenção e a liberação da Hidrovia até Marabá-PA, está por demais focada nas "commodities minerais e sua verticalização", deixando de lado o principal, que seria a enorme "teia" de serviços e comercio que surgiriam na região, decorrentes da posição geográfica privilegiada da área de Belém/Barcarena e outras regiões do estado, inclusive Espadarte(porto), este num sistema "agua-agua", desde que feitos os investimentos, provocando uma verdadeira "virada de eixo" nessa "contra-mão". As variantes do assunto são enormes e complexas, principalmente na cabeça de quem detem o poder decisorio, que mudariam ou iniciariam o processo de mudança da atual sistemática. Espero ter contribuído para o debate em prol de um assunto que está em plena ebulição, principalmente em nossa região. Em 23.02.13, Marabá-PA.

Anônimo disse...

Em tempo : Corrigindo em Barra do Çarça-MT, leia-se Barra do Garça-MT. Em 25.02.13, Marabá-PA.