quarta-feira, 25 de abril de 2007
Minha cidade, minha vida
Ademir Braz
1
Assim como o pedreiro orienta
do ferro e da pedra o verbo exato;
como a lavadeira que os panos leva
aos girassóis da fonte matinal
e nos álveos de luz dispersa em cora
a seda orvalhada dos lençóis;
assim minh’alma disporei em pranto
até que tu, só tu, aurora minha,
raies sobre as velas do meu canto.
2
Entre as sombras que a luz semeia
de brilhantes, enredado em fluídos
ouço tua voz, cidade, acalentando
em pranto insones e perdidos.
Sobre o sono lânguido das rochas
ardem lírios brônzeos. Secretos
címbalos cintilam em vertigem:
é todo estilhaço pelos tetos
o mar luar silenciosamente.
Puro ouro em pó sobre a calçada
é teu soluço, córrego sem leito,
e que sentido tem a luz assim
esparsa e rara a transmudar-me o peito?
Eu vivo imerso para sempre neste
e nas coisas deste e dos outros mundos.
3
Há dias, porém, que me aborreço
até com que me aborreço. São
dias inóspitos, de fardos e farpas,
agravos e adagas; são águas terçãs
de agosto aquilo com que me aborreço.
São ácidos dias, cidade, quando
a vida, aos trancos, derrapa, trepida,
e a mão em chaga viva tece de urtigas
um manto sob o céu de pássaros e bruxas.
E troto então em tuas ruas várias
entre meninos sombrios e cães sem dono
e lembro, dos teus cantores, aquele
que chorou por ti no plenilúnio:
“Sofres: teu mal devora-te as entranhas;
há podruras que a seiva te empeçonham...”
4
A voz tonitroante - e inútil, cidade -
do poeta ressoa nos casebres
e na praça mouca dos poderes
(mas nem por isso cessarei o alarde).
Queria então falar de amores, cidade,
mas o amor não é tudo: não é paz,
nem crença, nem destino. Não é pão,
justiça, crime ou câncer. Nem terra
ou fome; cataplasma, água, ar, insônia,
nem bebida forte que os olhos doura.
5
Que fim levou a amada, cidade,
a dos olhos dourados e mãos camponesas
que um dia, ao fim do dia,
levou-me uma rosa entre os seios
e a promessa - já realizada -
de uma dor tão grande como nunca vista
em nenhuma teogonia? A amada
e a rosa eternizaram-se no espelho.
6
Vês? Tu e eu morremos um para o outro
diariamente. (Somos o que somos. E somos
apenas memória do que fomos).Tudo que sei
disperso neste coração legado às ventanias:
só trago no céu da boca, indissoluta,
a tatuagem invisível de tuas estrelas.
Sim, são ácidos esses dias,
quando até o amor se exila.
Então a poesia sai de mim aos gritos
e não sei senão das coisas que os pássaros
perdem, o mar deixado atrás, a negra noite
que se acumula na boca
entre versos de Neruda.
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