quarta-feira, 25 de abril de 2007
Símbolos avessos de àbaraM
Ademir Braz
Visto da Praça do Pescador, é como se o Tocantins
acabasse logo ali, depois da praia, num lago imenso
e tranqüilo ilhado em verde e nada mais houvesse,
por trás das nuvens e do pôr-do-sol,
senão os limites do tempo e da eternidade.
À direita, nos rumos de onde amanhece,
o rio também parece deter-se na cerca viva do verde
e na escuma do ar e do céu, onde, em certos dias,
aviões aparecem e desaparecem tão repentinamente
vindos do nada que é como se fossem pássaros mágicos
a entrar e sair da cartola invisível de Deus.
Por essas coisas, há quem diga ser esta terra
um fim em si mesma, lugar de viver
e morrer e de ficar, mesmo depois da morte,
retido no ouro fino da luz,
na seda de sussurros de águas e barcos,
entre pássaros e sombras, cheiro de frutas e peixe,
a recordar a infância, os amigos e vizinhos deixados para trás,
e que de repente acenam e sorriem de uma dobra da memória
antes de se desterrarem outra vez.
Dentro d’água bubuiam três meninas mal chegadas à puberdade.
Elas atiram chistes a intervalos para a outra
que as acompanha sobre o cais, vestida e molhada,
os cabelos lisos sobre os peitos duros e morenos.
Todas riem e descem rumo ao largo do padroeiro
e sobre suas cabeças nuvens formam mares,
continentes, cidades, ilhas, sedutoras miragens movediças,
desertos e vales soterrados em neve.
No limiar da praia, a tarde cai.
Cai a tarde no limiar da praia.
No banco da praça, entre o rio e as nuvens, ocorre-me
a instintiva compreensão de todas as possibilidades.
Às 15h52,
varre a empregada pés burgueses instalados na churrascaria.
Ela vai e vem, arrasta cadeiras de plástico,
esfrega o chão com a piaçava gasta, espalha,
mais do que junta, as sobras que crianças dispersaram
enquanto os pais bebiam e olhavam a praia distante
sob o insuportável esplendor do dia.
O gordo com cara de ponto-e-vírgula
olha-a de cima a baixo intransitivo e ela diz,
enquanto empurra sandálias sob a mesa,
que precisa ir, o filho está com fome na casa da vizinha
e a vizinha ainda vai arrumar lençóis no motel a noite inteira.
Exceto pelo sangue olvidado entre as pedras
(ali onde o vendedor de drinques foi morto à facada),
e pela besta-fera à espreita no tugúrio mal-assombrado,
aposso-me de tudo como parte de mim: é carne
da minha carne esta cidade cruenta e pagã.
Meus olhos de sal flagram hordas a pelejar com carros
por espaço e território na rua, e são coxas, dentes, cabelos,
inocência e trapos, clara clandestinidade
de ervas sãs, odores e gestos cúmplices.
A bunduda tem os pés para dentro, de papagaio,
a cara larga dos tapuias; o shortinho adolescente ali,
no rendengue, umbiguinho de fora, e as pernas grossas
meio dobradas ao peso das nádegas.
É desta beleza que quero meus versos, ó musa!
Não seja a minha poesia apenas e só o mar,
a tônica do mar, a túnica de sal do mar.
Mais ainda deste rio, aboio de rio, arrulhos em cio,
e sobre tudo, na superfície, um beijo,
como nas entranhas o desejo
de um mergulho e um gole de aguardente.
(A praia, além, sutil acena ao suicida:
é que nem toda alma suporta a estonteante
e mortal beleza da água fugidia.)
As escamas de luz sobre o rio mudam da prata ao ouro
conforme a riqueza do sol ao longo do porto de chumbo;
e às vezes douram panelas vazias, cacos de espelhos,
embarcações ancoradas num tempo irreal num porto irreal,
onde embarcadiços olham do cais o alvoroço da luz
e meninos famintos engraxam as botas da noite.
Grande cidade!... Adoram-te os adventícios de passagem!
E se te chamasses drum monde,
teus tambores talvez acordariam o mundo!
Mas nós, que te conhecemos, nós, intraterrestres,
se nos falam do teu brilho deixamos no ar
um riso camaleônico e o mais sórdido dos sorrisos.
Pior: traduzimos com sarcasmo aquilo, os castelos
que vêem no teu céu de junho, como torrões de sal,
amaro algodão de nuvens dúbias,
solobmìs sosseva ed àbaraM.
*****
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5 comentários:
Li várias vezes sua versão dos símbolos avessos de Marabá. Quem sabe porque pra mim, tal qual Itabira para Drummond - sem a menor modéstia - Marabá é um retrato na parede, e também dói.
Mas, uma frase arranhou a minha memmória:
"...é como se o Tocantins
acabasse logo ali, depois da praia, num lago imenso
e tranqüilo ilhado em verde e nada mais houvesse,
por trás das nuvens e do pôr-do-sol,
senão os limites do tempo e da eternidade."
E eu lembrei que depois de dois ou três dias aí, eu tinha a sensação de que era a única pessoa que sabia que o mundo não se acabava na curva do Tocantins, e via apenas o Tocantins como um rio importante da minha geografia escolar e que, de repente, eu podia pisar nas suas águas, como se uma mágica me transportasse da página do mapa colorido para uma realidade que eu não conhecia e que pretendia domar.
Mas, a sensação de estrangeira a cada dia se agravava. Na verdade, o conflito era entre eu e eu e a minha eterna presunção, porque meus olhos queriam alcançar a outra margem, a minha margem, e por pouco quase me afogo, eu que não sei nadar até hoje...rsrsrs..
E o seu verso, depois de 29 anos, aponta meu principal engano. Tivesse eu me circunscrito ao que via naquele momento e olhado o Tocantins como referência, sem me apegar ao que queria entrever além da margem, quem sabe Marabá não tivesse doído - e ainda dói - tanto. E aquele sentimento de estrangeira, que perdurou nos 15 anos que vivi aí, teria parecido mais leve.
Um abraço agradecido.
Fraterno.
Amoroso.
Caro amigo,
Eu que nasci de frente para o mar atlântico, talvez não compreenda o alcance do rio. É certo que, depois de 24 anos nesta terra, criei raízes e filhos, o que não é o bastante para ter essa compreensão. Só, que tens o umbigo enterrado nas barrancas do rio Tocantins, tem a capacidade de compreender e enxergar essa magnitude fluvial.
Aprendo humildemente com a lição da tua poesia. É o que basta, pois.
Meu caro Ronaldo Giusti, obrigado por suas palavras e pela visita. Espero que você nos brinde logo com novas poesias. Seu "Canto Inicial" de prenúncios poéticos, precisa continuar em novos galhos floridos.
Um abraço
Pagão,
Já que pedes uma poesia minha. Mando-te uma. Não quero explodir a sintaxe, como pretendeu Ferreira Gullar. Mas venho tentando ignorar as maiúsculas, as pontuações e os títulos. Talvez a liberdade do fazer poético explique o que quero com isso. É possível que eu queira conferir maior velocidade ao poema, impegnado da velocidade dos dias.
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a plebe ignara
povinho servil
não sabe de nada
não olha nem diz
oh pobre gentalha
de pequeno cérebro
serve bem ao amo
e de si esquece
moderno escravo
assalariado
se nega à revolta
mantém-se calado
não olha pra frente
nem vê seu papel
oh inerte vida
de tão pouco mel
esconde a dor
oh medo feroz
não sabe: é coveiro
do seu próprio algoz
Ótima poesia para um manifesto do Dia do Trabalhador.
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